TITANE
Um metal altamente resistente ao calor e à corrosão, frequentemente utilizado em próteses médicas devido à sua pronunciada biocompatibilidade.
TITANE. Titane, Titane, Titane. Até dá prazer em repetir o título! Um nome que deve ser proferido com entusiasmo e escrito em maiúsculas porque esta criação exige caps lock, acompanhado por profanidade criativa. O seu nome revela, simultaneamente, tudo e nada acerca desta experiência, uma cujas distribuidoras Alambique (Portugal) e Neon (Estados Unidos) esforçaram-se para manter em mistério no seu marketing, com trailers que revelavam somente umas imagens estranhas ao som da majestosa banda sonora de Jim Williams ou da canção “She’s not There” dos The Zombies. Até o enredo oficial impede a partilha da sua história, resumindo esta com o significado da palavra no contexto narrativo ou simplesmente pela descrição da realizadora nas suas intenções perante a produção. Deviam acrescentar uma frase a desejar “Boa Sorte!” no fim da sinopse.
No instante em que as luzes apagam, assinamos um contrato entre a tela e todos os membros da audiência através de olhares, meias-gargalhadas, grunhidos e exclamações de choque e náusea que une os espetadores, com a consciência que ninguém acaba indiferente neste espaço. Titane subjuga o público, algemando os braços à cadeira e as mãos aos joelhos, com um aperto na garganta, que impede a respiração e o escape desta demência deslumbrante e um olhar direto e pesado onde a única possível resposta é cuspir entre palavras uma súplica para persistir nesta aflição com: “Yes, Daddy Titane” – ou “Yes, Mommy Titane” (ambas funcionam) – numa das obras mais profundamente intensas, violentas, sujas e espetacularmente elegantes deste último ano.
Vencedor da Palme D’or em Cannes, surpreende por ser a segunda vez na história do festival que uma realizadora recebe o prémio, e pela natureza invulgar desta criação. Titane liga o motor com body horror e com um coração vigoroso que bombeia uma mistura de óleo com sangue pelo corpo inteiro desta longa-metragem e da sua protagonista, Alexia (Agathe Rousselle), uma mulher com uma placa de titânio na sua cabeça e uma atração peculiar por viaturas, alienada e maioritariamente silenciosa, que foge de casa, numa descoberta da sua identidade, sexualidade e género, encontrando Vincent (Vincent Lindon), um homem desesperado, no seu caminho. Apesar do meu esforço em descrever o enredo para além da sinopse oficial e conter as revelações suculentas, existe um motivo para estar envolvido em mistério, porque nenhum resumo faz justiça ao filme e a própria conceção está na atração pela anormalidade, que somente consegue persistir se atrair uma audiência pela curiosidade em vez de afugentar esta com a sua premissa inusual.
A construção de Titane surge da realizadora Julia Ducournau, responsável pelo magnifico Raw (2016), que monta uma história acerca de mentiras, ilusão e a ternura que pode irromper pelos canos corrosivos, desgastados e repugnantes da humanidade como forma de renovação pessoal e familiar. Intensamente desconfortável e repleto de humor negro e carinho pelas suas personagens aberrantes, Ducournau, atinge as suas intenções de desenvolver uma narrativa sobre o nascimento do amor na monstruosidade. Assistir ao primeiro ato com esta ideia pode aparentar confuso, devido às extravagâncias grotescas que testemunhamos, contudo, pelos créditos finais compreendemos verdadeiramente o aspeto formoso singular que a cineasta insere nesta película, como se colocássemos a mão no peito de uma besta assassina e sentíssemos o seu batimento cardíaco ou as suas lágrimas a escorrerem pelos nossos dedos.
Titane não demanda respeito nem necessita dele, porque recebe imediatamente pela sua espantosa direção impiedosa e implacável e pela confiança impressionante da realização de Ducournau, cuja câmara representa as várias facetas da nudez e sexualidade da sua protagonista com movimentos sensualmente assustadores, exibindo um conforto natural e apropriando-se da imagem de male gaze com glamour e agressividade, encaixando impecavelmente em sessões aterrorizantes acompanhadas pela filmografia de Gaspar Noé, David Cronenberg ou Shin’ya Tsukamoto.
Tecnicamente assombroso com uma direção de fotografia cuidadosa e poderosa, onde os faróis de um carro ardem com similar intensidade às chamas de uma casa incendiada, e com uma linguagem sonora potente que impede a audiência de esconder-se dos visuais grotescos através da sua edição de som extraordinária, intimidando o espetador com um motor que vibra pela perna acima até sentirmos este entranhado na pele, e atos de violência cujo trabalho de foley retira a necessidade da imaginação. Estes aspetos técnicos cimentam uma obra grandiosa bombástica em todos os sentidos.
Fechada numa lógica interna da sua realidade, Ducournau foca-se no medonho da humanidade e elabora uma espécie de monstro de Frankenstein dançarino que faz twerk num banho de sangue escuro, numa narrativa com uma agressividade delicada contraditória que surpreendentemente funciona, precisamente pela afeição e compaixão que a realizadora tem perante estas criaturas disformes, interpretadas brilhantemente por Agathe Rousselle e Vincent Lindon. Uma das poucas artistas capazes de desenvolver uma obra sobre a descoberta de amor próprio, familiar e apaixonado, num ambiente de esgoto, onde uma cadeira e um gancho de cabelo servem múltiplos propósitos aterradores.
Titane reveste a sua alma de metal com um coração a arder em chamas que persiste em bombear sangue, mesmo quando o corpo permanece pútrido, atingindo uma tristeza comovente final que combina sangue e pathos emocional, transformando monstros em seres humanos e encontrando sensibilidade na sombra, beleza na depravação, felicidade na ilusão, vida na morte e amor na destruição. Uma experiência inesquecível impossível de ser resumida sem profanidade entusiástica. Perdoem-me, mas f***-se, TITANE é extraordinário!