Segundo a Wikipédia, Thoroughbreds é uma comédia negra e também um thriler. A primeira longa-metragem de Cory Finley, conta com Anya Taylor-Joy no papel de Lily (uma estudante do secundário), Olivia Cooke, no papel de Amanda (uma adolescente despida de emoções) que contratam Anton Yelchin, no papel de Tim (traficante de drogas) para matar o padrasto (Paul Sparks) de Lily. Podiamos terminar agora com: “Mas nem tudo corre como esperado…”, mas isso seria abusar dos clichés. Nem a própria Wikipédia se atreveu a escrever isso.
Não é o único cliché por aqui. Uma história com uma cabeça de cavalo cortada. Temos planos em câmara lenta enquanto as protagonistas caminham decididas rumo ao seu objetivo. Um trecho de “Avé Maria” de Schubert, desprovido de som, enquanto se vislumbram objetos bonitos, as mãos de Tim acariciando um carro, reluzente, percorrendo todas as linhas que o definem. Um verdadeiro clássico americano. O desejo de ter mais. De ser mais. O SONHO AMERICANO. Tudo ao alcance de Tim, se… matar o padrasto de Lily. Parece tudo muito simples. E seria, se fosse um filme vazio. Um debitar de clichés até atingir o clímax. A morte do padrasto (mau como as cobras, a merecer o que o espera) enquanto as “heroínas” Lily e Amanda se salvam, incriminando Tim que, é condenado à pena de morte, pelo seu crime hediondo.
Não estraguei o filme. Não foi um spoiler imperdoável. Podem ver o filme ainda. Aliás, nem acho que o filme seja sobre o crime perfeito. Ele existe, mas está longe de ser perfeito. É um filme sobre derrubar barreiras, sobre relações humanas e de como a nossa perceção das mesmas nos leva a mentir para as manter. Amanda, sociopata assumida, despoleta em Lily, mudança. Amanda confronta Lily. Amanda acredita na verdade em todas as situações e coloca Lily entre a espada e a parede. Lily é apanhada numa mentira. A culpa instala-se. O desconforto cresce. A verdade de Amanda é desconfortável – ou será, qualquer verdade incómoda? -. A fachada de Lily começa a cair, as barreiras quebram e de Lily sai a verdade sobre o que pensa realmente. E aí começa o filme. Com a verdade, pura e dura.
Existe a frase famosa: “The Truth will Set you Free”. Perguntei a mim próprio quem a disse pela primeira vez. Foi dito por Jesus no evangelho de João. Bíblia portanto. O Google ajudou a resolver o problema. Abençoado. O primeiro momento de sinceridade de Lily para Amanda inicia a relação de ambas. Isto fez-me pensar numa adição a essa frase sobre a verdade. O seu alter-ego, a mentira, também tem de fazer parte. A verdade não existe sem a mentira. As relações humanas baseiam-se numa intricada combinação de verdade e mentira. Nenhuma sobrevive sem ambas. A combinação seria algo como “Lies will get you in (and/but) the truth will set you free”. A barreira entre a verdade e a mentira é algo que tem de ser quebrado para que a relação evolua. Tem de haver vontade de ambos os lados para que isso aconteça. É por isso que acho este filme um constante derrubar de barreiras. Duas pessoas, totalmente diferentes no início, são almas gémeas no final. A separá-las, apenas a maneira como lidam com a verdade na sua vida. Amanda não sabe o que quer mas sabe quem é. Lily sabe o que quer mas não sabe quem é. É Amanda quem lhe mostra a verdade, a sua verdadeira essência e quem ela é por detrás da fachada. E a barreira, ao ser quebrada, não pode ser reerguida. Não se pode voltar atrás.
Numa cena do filme Amanda joga xadrez sozinha e conta uma história perturbadora. A história termina com um lento zoom na cara de Lily. E no final um som perturbador reforça o momento desconfortável. Cory Finley consegue escrever sobre o desconforto e filma para o acentuar. Todos os personagens lidam com o desconforto à sua própria maneira. Seja na mentira ou na verdade. A verdade pura e dura é desconfortável. Ninguém a quer ouvir mesmo quando dizem que é o que mais querem. Ao revelar uma história muito pessoal, Amanda quebra a barreira final. O xeque-mate final. Que acaba por despoletar o ato III do filme.
A conclusão não é a esperada, o que é sempre refrescante. Mesmo dizendo que o padrasto de Lily morre continua a não ser um spoiler. O filme não é sobre um crime. É sobre a procura do sentido da vida. Mesmo para Amanda, que aparenta não ter nenhum sentido. Não sente nada, como a própria diz. Como pode arranjar sentido para a vida? É Lily quem lhe abre os olhos. Casar? Ficar solteiro? Ser rico? Viajar por esse mundo fora? Amar e ser amado? Salvar a vida a alguém? Criar uma vacina que salve o mundo? Plantar a maior batata do mundo? Comer gomas até rebentar? Criar uma obra de arte admirada por todos? Uma destas poderá ser o sentido da minha vida. Amanda descobre o sentido da sua e, pode finalmente sentir.
Aconselho este a quem está perdido, sem rumo para a vida. Não acho que a solução seja matar o padrasto, para todos. Mas poderá abrir-te os olhos para te descobrires a ti próprio. Doa a quem doer. Mas agora a sério. Deixem os vossos padrastos em paz. Eles não têm a culpa. Isto vindo de um filme carregado de sociopatas não é nada mau como lição de vida. Acho que posso concluir que, para mim, a frase ideal seria “Your truth will set you free”. Mesmo que essa verdade seja a mais desconfortável.