Park Chan-wook é o cineasta mais romântico da sétima arte contemporânea. Esta afirmação pode suscitar alguma estranheza nos leitores familiares com as obras ferozes deste realizador, como Oldboy (2004), cujos momentos icónicos envolvem um polvo vivo devorado, uma língua cortada e um presente perfumado com o tóxico aroma inebriante do taboo, todavia, é precisamente essa natureza impetuosa que o artista sul-coreano insere nas suas histórias, que as destacam como criações verdadeiramente apaixonantes. Existem barreiras estabelecidas nos seus argumentos, enraizadas no solo como cercas biológicas, elaborando uma ilusão de proteção nos seus perigosos, vastos ramos, que aprisionam os protagonistas num mundo solitário camuflado como um dever perante a família, amantes, as suas próprias pessoas, a sociedade ou até Deus. Este corpo lígneo empurra estes seres a ultrapassar estas barreiras para compreenderem os seus desejos, as suas vontades e as suas identidades, atingindo uma distante felicidade ou uma inédita tristeza, acarinhada numa liberdade anteriormente impossível.
Em Thirst, inspirado no romance de Émile Zola, Thérèse Raquin (1867), essas barreiras são inicialmente avistadas num ato de perdição quando o padre católico, Sang-hyun (Song Kang-ho), sentindo-se isento de propósito, decide voluntariar o seu corpo numa experiência médica que procura uma vacina contra o mortífero Vírus Emmanuel. Apesar do seu fracasso infetar-lhe com uma doença fatal, Sang-hyun renasce miraculosamente como o único sobrevivente entre os pacientes, exceto que sedento por sangue. No seu regresso à Coreia do Sul, recebido graciosamente por pessoas desesperadas à procura da salvação do Padre Milagre, Sang-hyun assiste um amigo de infância na sua doença e estabelece uma segunda ligação com a sua família, incluindo Tae-ju (Kim Ok-bin), a solitária esposa do seu companheiro, com quem cria uma maior intimidade, derrubando as restantes barreiras.
Inicialmente seduzidos pelo escape de um espaço isolado, seja formado por uma família insensata e ignorante ou pelo silêncio de Deus perante esta nova vida como um monstro pecador, Tae-Ju e Sang-hyun desenvolvem uma relação além da moralidade, recuperando a sua autonomia e identidade nos seus prazeres carnais, lambendo literalmente as feridas um do outro. Eventualmente, esta insólita liberdade domina estes protagonistas a desmantelar os restantes limites dos seus apetites, implicando a existência desta família. É necessário recordar que romântico não implica somente integridade ou moralidade. São as mentiras manipulativas, o voyeurismo depravado, a insanidade libertina, a carnificina orgásmica e o poder afrodisíaco exibido na morte, ao retirar a última respiração de outra pessoa, que demonstram uma invulgar manifestação da paixão. Independentemente da interpretação de amor, uma relação, semelhante à religião, implica possuir fé.
As suas crenças acompanham o protagonista numa viagem pela sua transição, esforçando-se para impedir a sua sede de manifestar-se pela jugular de vítimas e desculpando constantemente a sua ardente atração pelo corpo de Tae-ju, com uma recordação das suas intenções benévolas antes desta maldição. Park Chan-wook utiliza o género vampírico cinemático para explorar dilemas morais, hipocrisia religiosa, o encanto do taboo e da corrupção corporal, e a isolação emocional e física que impele a humanidade a perseguir e consumir o proibido, exibindo seres humanos em descontrolo animalesco, estimulados pelos seus instintos, num argumento abastado em metáforas e conceitos fascinantes. Estas alegorias religiosas atormentam o seu protagonista, que confronta os seus ideais, as suas ações e pensamentos com um desespero inevitável perante a tentação, e perseguem o elenco secundário, que desvanece lentamente pelos seus próprios pecados. São personagens ansiosas por encontrar esperança, seja no Céu ou mesmo no Inferno. Exceto, naturalmente, Tae-ju, uma mulher que não acredita nestas figuras. Para ela, uma pessoa que procura fugir da sua casa desde infância, esperança é inexistente.
Necessário louvar a interpretação de Song Kang-ho, sendo um dos melhores atores contemporâneos e completamente subvalorizado no escopo cinemático mundial, que insere uma sensibilidade única neste padre, definhando a sua hostilidade e impedindo este de ser desprezível, contudo, é exigido mencionar a performance de Kim Ok-bin como uma das minhas favoritas de sempre, assistida pelo argumento incrível que desenvolve uma personagem absolutamente extraordinária e hipnotizante; a atriz destaca-se como divertida, sedutora, apavorante e tresloucada, capaz de evocar o público a cometer os lapsos deste homem, em nome da sua pele, mesmo consciente das consequências. A morte é insignificante quando comparada ao sorriso malicioso desta mulher. Compreendemos a necessidade de proteger esta de uma prisão familiar, mergulhamos com prazer no derrame de sangue alheio pela sua satisfação. É uma personagem que corre a possibilidade de desfazer-se no estereótipo manipulativo, todavia, o argumento nunca esquece a sua humanidade e o olhar de Kim transparece uma mágoa permanente, similar aos calos dos seus pés, que elucida o seu comportamento como uma essencial camada de sobrevivência. Todos precisamos de proteção, seja no conforto da religião, ou no simples ato de entregar os nossos sapatos a uma pessoa descalça. Neste sentido, além de uma exploração espiritual, Thirst funciona similarmente como uma metáfora para a paixão.
A sensação de uma história all over the place, devido à densidade temática do seu argumento, é inevitável (um problema corrigido no Director’s cut, infelizmente somente disponível na Coreia do Sul e na França), no entanto Park Chan-wook desvia a atenção destes percalços com as suas imagens impressionantes e estrondosamente formosas, preenchendo o ecrã com a iluminação intoxicante e provocadora de Chung-hoon Chung, que domina a câmara com movimentos similares a uma exibição desportiva, num jogo de palavras e segredos durante os diálogos da família, fixando o plano na melancolia da solidão, do absurdo e da tragédia e estabelecendo um passo visual cativante como uma mão a percorrer gentilmente umas costas arqueadas após a entrega corporal; um sentido de humor negro hilariante – uma cena de sexo interrompida pelo sentimento de culpa salienta-se como um dos momentos mais engraçados de sempre no cinema – que impede esta sua longa-metragem de ser resumida num único género, balançando horror com romance, drama, comédia e o erótico; a maravilhosa banda sonora de Jo Yeong-wook, movida por tambores, flautas e violinos, criando uma impressão poética no animalesco como uma criatura a nascer da própria música, erguida pelas notas numa sepultura harmoniosa; o design de som luxuoso, propulsionando beijos e gemidos com uma intensidade violenta apaixonante; e com os cenários gloriosos de Ryu Seong-hie, que atribuem um ambiente conservador e antiquado à prisão de Tae-Ju, e um irónico branco angélico ao espaço deste casal, transformando o seu Céu num hospital vazio, desprovido de vida, marcado pelo sangue vermelho e o vestido azul desta protagonista. Jesus! O talento de Park Chan-wook faz-me acreditar em Deus!
Perversamente divertido e absurdamente doce, Park Chan-wook percorre a pele desta película atrevida com uma sensualidade tremendamente lasciva e pungente, similar ao sangue que escorre pelos lábios desta protagonista, sedenta pelos pecados que nunca sentiu na sua alma, esfomeada pela vida que sempre escapou pelos seus dedos – os calos dos pés recordando um passado a fugir do seu presente. Thirst é puramente carnal na maneira como permite o seu suor verter pelo ecrã, mesclado em fluídos e num erotismo excitante, transformando a audiência em criaturas devassas, à procura de degustar estas especiarias demoníacas, encapsulando, assim, a tentação humana de arder nas entranhas de Satanás, confortados por este calor, inexistente numa vida insensivelmente glacial.
Uma história de amor sociopata enterrada num universo doentio e ressuscitada pela luxúria lírica. Park Chan-wook é verdadeiramente o cineasta mais romântico da sétima arte. O realizador elabora um filme sobre a estranheza do ato de apaixonar e a sua suscetibilidade transformadora que molda seres humanos em monstros, incapazes de discernir entre amor ou desejo. Na conclusão hilariante, todavia profundamente trágica desta sua obra vampírica, o artista responde a este mistério com um simples: O que importa? Nestes mundos intensamente devastadores, reinados pela miséria, estes indivíduos conseguem encontrar significado nestas ligações violentas e imorais e conexão através do pecado. É a segurança de um par de sapatos. É a troca de um olhar puramente sexual. É a fome pela brutalidade. É a proteção de um abraço, ainda que mergulhado na tortura do sofrimento egoísta. Thirst é profundamente romântico pois compreende que mesmo no Inferno, conseguimos sentir amor.