They Shot the Piano Player (Mataram o Pianista) está integrado na programação da 23ª edição da MONSTRA | Festival de Animação de Lisboa, na Competição de Longas-Metragens, cuja sessão ocorre dia 11 de Março às 21h30.
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Francisco Tenório Jr. é nome desconhecido de quase todo o mundo. Um pianista e músico muito talentoso, e um dos precursores e revolucionários artistas brasileiros responsáveis por levar a bossa nova ao mundo inteiro. Trabalhou com todas lendas vivas da música brasileira como António Carlos Jobim ou Vinicius de Moraes entre outros aclamados mundialmente, enquanto ele próprio foi esquecido pela história. They Shot the Piano Player apresenta-nos a trágica, e muito curta, vida de Tenório Jr. sob a forma de um documentário de animação, espécie muito rara de ver nas salas de cinema. É realizado por Fernando Trueba e Javier Mariscal, que já tinham colaborado num outro projecto, também ligado à música, de nome Chico & Rita (2010).
Para quem está familiarizado com esse filme, as semelhanças, em termos de animação e paleta de cores, são muito grandes. Mais do que isso, a paixão pela música sente-se em cada segundo de ambos os filmes. É claramente um projecto muito pessoal para Fernando Trueba, fruto de um desejo demostrar o virtuosismo de Francisco Tenório Jr., e com um documentário de imagem real talvez tal não fosse possível. Seria apenas mais um desfilar de convidados a falar sobre um grande artista, apenas apresentando uma ideia daquilo que os outros tinham dele. A única solução seria então um documentário de animação, como a opção mais apropriada para o conhecer realmente, pois assim é possível ver uma versão dele vivo, tornando-o mais real. O estilo de animação utilizado pode apanhar de surpresa quem está habituado ao mercado americano, ou mesmo ao japonês, pois a fluidez não é de todo a mesma, mas ainda assim é a escolha certa para revelar o enredo simples de investigação criminal no cerne da história. O uso de uma abordagem diferente na animação permite algumas sequências muito bonitas, em que a paleta de cores forte saiu a ganhar nos momentos de enquadramento histórico e político de Buenos Aires e na borbulhante cena musical do Rio de Janeiro nos anos ’50 e ’60. Ou seja, quando está no passado, o filme transcende-se e revela um tempo maravilhoso de inovação musical e de partilha com o mundo, influenciando grandes nomes americanos como Stan Getz, Chet Baker, Ella Fitzgerald e Frank Sinatra, alguns visitando a cidade do Rio de Janeiro para poder “beber” dessa inspiração centrada na icónica Copacabana, no chamado Beco das Garrafas.
Intocável também é a banda sonora escolhida para retratar tanto a época de ouro da bossa nova brasileira, como a obra musical de Tenório Jr.. Para além de alguns pequenos apontamentos das canções mais icónicas (que eram inevitáveis), a escolha recai sobre o virtuosismo dos seus intervenientes e em opções menos conhecidas, mas é evidente a sua qualidade. Da obra musical de Tenório Jr., praticamente desconhecida, o sentimento é de deslumbramento da sua capacidade de improvisação e talento natural para a harmonização, bem patente em Embalo (1964), a sua Magnus Opus, e continuamente referenciado pelos seus amigos artistas. O mais incrível é ver o músico de igual para igual com estes grandes nomes, o que dá um sentimento de reconhecimento e de redenção merecida a este artista que partiu cedo demais.
Infelizmente, não se sente o mesmo para o presente retratado nas movimentações de um jornalista fictício de nome Jeff (V.O – Jeff Goldblum) que procura saber o que aconteceu a Francisco Tenório Jr. naquela fatídica noite em Buenos Aires, quando nunca mais foi visto. Apesar da enorme galeria de “gigantes” da música brasileira entrevistados por Jeff, ao qual é impossível ficar indiferente, a animação de personalidades famosas não surge tão natural e perde, e muito, a parte emocional do que dizem, acabando por soar como o debitar de um guião previamente estabelecido. Mesmo Milton Nascimento, claramente emocionado, e a dupla Toquinho e Mutinho, que nos presenteiam com uma música de homenagem a Tenório Jr., acabam “anestesiados” pelas escolhas de animação e não diferem muito, como seria justo, dos seus mais contidos conterrâneos. O argumento perde-se, por vezes, em círculos em que continuamente ouvimos o que já tinha sido referido anteriormente, não evitando o sentimento de que necessitava de alguns cortes para tornar a história mais fluída. A constante repetição acaba por tornar a parte investigativa da história redundante, mas não impede o espectador de sentir a perda enorme que foi a de Francisco Tenório Jr. para o panorama artístico brasileiro, principalmente quando sabemos o enorme mal-entendido e a injustiça que lhe deu origem.
Uma merecida e sentida homenagem a Tenório Jr., injustamente esquecido pelo implacável correr do tempo, por Fernando Trueba e Javier Mariscal. Nem sempre se percebem as escolhas do argumento ou a falta de intensidade em alguns depoimentos, mas é inegável a maestria e o talento natural puro do artista. Ter o privilégio de o conhecer é o maior triunfo de They Shot the Piano Player.