Thelma, do cineasta norueguês Joachim Trier – recentemente aclamado por The Worst Person in the World (2021) que foi nomeado para dois Óscares em 2022: o de Melhor Argumento Original e o de Melhor Filme Internacional – teletransporta-nos para a vida da adolescente de nome homónimo quando deixa a casa dos seus pais extremamente protetores, e exacerbadamente católicos, para prosseguir estudos superiores em Oslo. Aqui, Thelma (Eli Harboe) inicia randomicamente um processo de (re)descobrimento identitário de forma catártico-sobrenatural através dos poderes que a libido, a paixão, o trauma, a raiva e a violência lhe conferem.
A abnegação imposta por outrem – um paradoxo, eu sei, mas ei-lo – neste caso, a inflição pelos pais da conjugação perseverante e perversa do verbo “abnegar” na vida quotidiana da jovem que se vem a traduzir previsivelmente numa vivência marcada pela recusa que é aprendida e autoimposta por Thelma – é a adjetivação que caracteriza a primeira parte do filme.
Não obstante, e de forma surpreendente, Joachim Trier leva-nos ao longo do filme até aos antípodas dessa questão belissimamente: da vivência enodada pela vergonha, pela culpa e pela repressão para a entrega, para a aceitação, para o exercício da vontade, para a verbalização categórica do “sim” pela protagonista Thelma – pois ao contrário de uma das definições para a palavra que muitos dicionários portugueses fornecem, pessoalmente abnegação não é altruísmo e muito menos é humildade pelo que o seu oposto não é de todo o egoísmo como novamente muito dicionários acusam… É a forma de egoísmo mais hipócrita ou, pelo menos, os que se intitulam de abnegados costumam ser os mais hipócritas como Unni (Ellen Dorrit Petersen) e Trond (Henrik Rafaelsen), os pais da adolescente, o provam muitíssimo bem através do seu acting nesta narrativa, visto que não escapam aos traços de carácter dos pais que tratam os filhos com uma toxicidade culposa gritante, ainda que aparentemente subtil, onde o stalking e a passivo-agressividade são normas: assumem-se, no fundo, como personagens-tipo exímias deste género de personalidade.
A candura do rosto de Thelma favorece a intriga, na medida em que acera o estrondo da sua catarse, que se vai desenrolando até atingir o seu clímax; as cores presentes como o cinzento, os tons azulados, enfim, as cores frias acentuam o mistério e a profundidade da trama e as cenas de erotismo embebidas nesta paleta remetem-nos para La vie d’Adèle (2013), mas com uma carga mais reflexiva, intensa e íntima muito graças à nuance de terror do filme. A hibridez da obra que oscila entre o terror, a ficção científica e o drama, atribui-lhe uma pujança enorme: não estamos perante um mero filme que retrata a mera história de uma menina oprimida por pais católicos, mas sim à face de uma obra brilhante onde os poderes sobrenaturais dessa rapariga fazem tremer luzes, mover candeeiros, evocar serpentes, partir vidros tudo isto num espetáculo visualmente assoberbante e concomitantemente introspetivo. O elemento de terror no filme é tudo menos gratuito, o espectador fica com a sensação e com o sentimento de que este elemento é inexorável para a narrativa, compreendendo a sua natureza.
Todavia, Thelma começa com uma certa aleatoriedade, mais concretamente registada no desenvolvimento do seu início, que permanece uma incógnita relativamente à sua definição, isto é, será este aspeto algo a apontar como negativo? Ou a explanação da história além de como é apresentada estragaria a sua dinâmica? Ao início sente-se um ritmoum pouco acelerado, o que não favorece o enredo, mas pouco depois desacelera, fazendo jus à obra.
Em suma, aduz-nos a uma premissa essencial, a de que o corpo transborda o que recalcamos quer queiramos quer não, sendo que neste filme isso assume-se através da psicogenia pela sobrenaturalidade. Não é possível fugirmos eternamente da vida sem que a vida não acabe por fugir de nós também, por mais cliché e redundante que esta frase seja, e Thelma acaba por agarrá-la bem com as duas mãos acompanhada pela maestria do realizador norueguês.