Olhar para a forma como o cinema exprime as ansiedades do mundo num determinado momento da sua existência vai muito além da análise intelectual e social que permite. Na verdade, tem a capacidade de ser a peça mais importante para o funcionamento a todo o vapor da tal “máquina de gerar empatia” a que Roger Ebert se referia quando falava do seu grande amor.
Num ano que nos deu Inside: Bo Burnham e Licorice Pizza ou olhando para 2020 e para o maravilhoso Saint Frances há um fio condutor, uma questão central, que une todas estas narrativas num Universo Cinemático assumidamente caótico: o que é suposto fazermos quando chegamos aos 30? Aqui não há respostas. Em vez disso, há compreensão. E otimismo.
Joachim Trier regressou a Oslo para terminar a sua trilogia temática sobre a cidade, e acompanha as aventuras e desventuras de Julie, numa arrebatadora performance de Renate Reinsve, ao longo de quatro anos da sua vida através de 12 capítulos, um prólogo e um epílogo que passam por mudanças de carreira; as relações com Aksael (Anders Danielsen Lie), um artista gráfico já nos seus 40, e Eivind (Herbert Nordrum), mais perto da sua idade mas conformado com uma vida tranquila como empregado de um café; confrontos com as expectativas que o mundo tem para uma mulher da sua idade; e a insegurança que esmaga quem, num certo ponto da sua vida, parece que a viu fugir em frente dos seus olhos.
Talvez seja pelo peso de tudo isto que o título The Worst Person in the World (no original Verdens Verste Menneske) é tão apropriado. O único momento em que a expressão é utilizada não é em referência a Julie mas sim a um dos seus pares românticos para descrever aquilo que sentia sobre si mesmo depois de um momento impulsivo e estúpido mas, francamente, pouco mais que inofensivo. Aquilo que faz o argumento de Trier, e do seu colaborador habitual Eskil Vogt, é obrigar-nos a encarar pessoas comuns, que têm bem mais a seu favor do que o contrário, e vê-las a ser constantemente consumidas por sentimentos de falhanço e arrependimento que lhes são impostos por uma vida social sobrecarregada de impulsos e sem misericórdia para com passos em falso, distrações ou erros microscópicos.
É o retrato de uma sociedade implacável nas suas imposições, mas na qual Trier encontra a beleza do quotidiano e do vulgar. Na adrenalina de conhecer alguém no êxtase de uma festa. Num jogo de avanços e recuos, de transgressões quentes banhadas a álcool e a excitação em que o fim é incerto e as consequências ignoradas. The Worst Person in The World é capaz de pintar um quadro cheio de melancolia e ansiedade juvenil com cores plenas de sensualidade, otimismo e tão a explodir de vida que num dado momento é capaz de fazer o mundo parar apenas para gritar de amores a plenos pulmões, numa das mais sensacionais cenas que 2021 nos ofereceu e que reforça a capacidade de Joachim Trier de ser um criativo visual que mistura o surreal com a emoção como poucos o fazem.
Julie é impulsiva, às vezes cruel e irracional, mas é também generosa, apaixonada e cuidadosa. É alguém que raramente faz a escolha racional e o filme agarra isso e torna-o a sua maior virtude. Há um momento em que Julie, meio a brincar meio a sério, diz que “não quer ser a escolha sensata enquanto outra mulher é a escolha sensual” e The Worst Person in the World é isto. É as escolhas que fazemos e as que não fazemos, e é sobre aceitarmos que dificilmente estas decisões serão as melhores e fazermos o possível com as cartas que a vida nos dá. Pede-nos que agarremos com firmeza cada momento e que aceitemos que a vida é toda a complexidade desses pequenos momentos em que o certo e o errado pouco ou nenhum lugar têm desde que sejam honestos para com nós próprios. “Eu só quero sentir coisas”, diz Julie. Ela não sabe o que está a sentir ou se é o que devia estar a sentir, porém sabe que estas emoções são dela e cabe-lhe somente a ela, talhar o seu caminho ainda que com os percalços e desamores que são tão inevitáveis como a própria vida.
Há tanto no magnum opus de Joachim Trier que é suficiente para qualquer pessoa se ver compreendida no caos desumano que é ser humano. Julie (mais uma vez reforçando porque nunca é demais) num extraordinário trabalho de Renate Reinsve, não sabe quem é, mas recusa-se a deixar que o mundo que a rodeia a defina. Corre de forma imparável para se encontrar, e nesta estrada tortuosa tem de haver más decisões, risco, erros, amor, arrependimento, orgasmos, lágrimas e uma força abismal.
The Worst Person in the World é sobre este percurso. O percurso daqueles que vivem sem saberem qual é a direção correta, mas que seguem num passo seguro pelo incerto, com todas as maravilhas que este oferece ao longo da jornada. É melancólico e otimista como um abraço quente de despedida com a promessa sentida de um futuro encontro, e deixaria Ebert orgulhoso pela forma como faz rugir todo o esplendor da sua máquina.
4 comentários
[…] (interpretado por Anders Danielsen Lie, mais conhecido pelo seu papel como Aksel no aclamado filme The Worst Person in the World (2021)) apenas ali se encontra porque quer os seus pertences de volta, pertences esses que estão […]
[…] Nos últimos anos saíram alguns dos quais também considero como uns dos meus favoritos, como The Worst Person in The World (2022) de Joachim Trier, e tick, tick… BOOM! (2021) de Lin-Manuel Miranda, onde as personagens […]
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