“Já imaginaste uma versão melhor de ti? Mais bela? Mais jovem? Mais Perfeita?”
São as palavras que ecoam no ecrã à nossa frente. Ninguém que veja o novo filme de Coralie Fargeat vai estar capaz de o acusar de ser subtil. The Substance é o equivalente cinemático a uma agressão física de terceiro grau que se prolonga mais de duas horas e mesmo depois de reduzir o teu corpo a uma pasta informe está a questionar-se se ainda pode ir um bocadinho mais longe. Em 2018, Revenge prometeu um futuro intrigante para a realizadora francesa, mas dificilmente se podia esperar um filme que colocaria David Cronenberg numa introspeção profunda sobre o seu legado no cinema.
Demi Moore, numa escolha tudo menos inocente, é Elisabeth Sparkle. Uma atriz no ocaso da sua carreira, que um dia havia ganho um Óscar, que um dia havia sido coberta de papparazzis, que um dia havia sido coberta de louvor e amor incondicional de um mundo de fãs que se fotografavam junto à sua estrela no corredor da fama, agora dispensada do seu programa de aeróbica, a sua última ligação à fama, porque “depois dos 50, acabou” nas palavras do seu produtor. Desesperada por recuperar a juventude, envolve-se numa experiência com “A Substância” que, através de divisão celular, cria uma versão mais jovem da pessoa original, mas com um aviso: têm de trocar de corpo de 7 em 7 dias. Sem exceções. Recordando constantemente, as duas são uma só.
É o conflito interno tornado externo. É a nostalgia pela juventude e o ódio ao presente. Quando se vive uma vida inteira sobre padrões de beleza absolutamente artificiais com efeitos plenamente reais, a falta de amor-próprio torna-se o elemento principal do terror quotidiano. The Substance é o male gaze transformado em filme, é a visão definitiva de um mundo obcecado pelo corpo da mulher e essa visão incorporada por aquelas que veem a sua vida inteira moldada pelo olhar masculino. Elisabeth olha para si com o aspeto de Sue (Margaret Qualley), a “versão jovem e melhorada” dela mesma, e apaixona-se pelas suas curvas, pelo sorriso e pelo poder que vem deste corpo, mas a maneira como a câmara de Benjamin Kracun está próxima e estuda obcecadamente o corpo de Sue quando esta olha para o seu reflexo, espelha o olhar lascivo com que a câmara do seu programa de aeróbica – que veio a substituir o de Elisabeth – capta cada poro da sua pele. Os olhares são semelhantes, mas as implicações são diferentes: de um lado a objetificação da mulher, do outro a integração desta ideia na forma como a mulher olha para si. É a mulher a olhar para si através do olhar patriarcal e a autodestruição que se lhe sucede.
A troca obrigatória entre “matriz” e “outro eu” oferece uma dinâmica tão inteligente que parece estranho só agora esta tenha sido colocada em prática. Esta dança entre o novo e o velho, entre Elisabeth e Sue (o outro eu), em que cada versão da pessoa se alimenta uma da outra e tira uma da outra, brinca com a ideia da memória, da tal nostalgia. Uma única pessoa, dividida em passado e presente. O viver o passado, viver o que se foi e o que já não se é, pelo menos no que toca ao mundo físico, é uma coreografia com consequências. No filme, estas manifestam-se no corpo em lenta decrepitude de Elisabeth, que sempre que pede emprestado mais tempo no corpo de Sue, o paga no seu eu, mas a inevitável questão por baixo disto, e que por vezes se apresenta de forma muito literal, é mais penetrante: estaremos dispostos a perder o agora para voltar a experienciar o que já fomos?
O ódio próprio de Elisabeth parece responder a essa pergunta várias vezes compulsivamente e, às vezes, involuntariamente. Esta hostilidade intensa das personagens de The Substance é expressa também nos restantes elementos que os rodeiam, com o seu maximalismo grotesco e displicência para com as regras, com os sets agressivos cheios de cores vibrantes e opulência, os seus homens aberrantes e estridentes (com um Dennis Quaid quase irreconhecível) e um trabalho de efeitos-especiais que desafia o estômago dos mais fortes. Com isto, num filme que sujeita o corpo humano a níveis de destruição reservados apenas a filmes como The Fly (1983), nada é mais aterrador do que o rancor nos olhos de Moore enquanto olha para as leves rugas que se estacionaram num dos rostos mais belos que já agraciou o ecrã.
Um filme em que cada frame é violência, onde mesmo os title cards que podiam estar num filme de Gaspar Noé parecem estar a gritar com quem está deste lado, The Substance é uma experiência de cinema única. Revoltante para a digestão, diabolicamente divertido e constantemente emocionante, é um retrato da assustadora sociedade da imagem e da juventude eterna, transportada numa performance gigante e transformadora de Demi Moore, alimentada por uma realizadora com uma ambição tal que, pelo que aqui vemos, é capaz de pôr o que quer que seja à frente de uma lente.
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[…] de grande júbilo nesta edição, The Substance, da realizadora francesa Coralie Fargeat, com Demi Moore, Margaret Qualley e Dennis Quaid, ganhou o […]