The Room Next Door (2024)

de Francisca Tinoco

“His soul swooned slowly as he heard the snow falling faintly through the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living and the dead.”

The Dead (1914), James Joyce

O prolífico e incansável realizador manchego Pedro Almodóvar regressa ao grande ecrã em 2024 com o delicado The Room Next Door  um filme que adapta um romance de Sigrid Nunez e marca a sua primeira grande produção inteiramente na língua inglesa.

Neste drama silencioso e irredutível sobre a morte, Tilda Swinton (na sua segunda colaboração com Almodóvar a seguir à curta-metragem de 2020, The Human Voice) é Martha, uma repórter de guerra diagnosticada com cancro. Partilha o ecrã com Julianne Moore na personagem de Ingrid, uma antiga colega de Martha que, ao descobrir a sua situação, decide retomar a amizade entre as duas. É difícil pensar em duas atrizes mais perfeitas para inaugurar a viagem de Almodóvar em terras de língua inglesa, quase como se ambos os campos estivessem à espera desta oportunidade para iniciar uma colaboração que parecia já predestinada.

Tanto Swinton como Moore, de formas completamente distintas, têm uma identidade no seu trabalho que, pelas escolhas destemidas que têm vindo a definir as suas carreiras, em tudo se alinha com a tão exclusiva lista de atrizes da filmografia de Almodóvar — Swinton em papéis mais peculiares e até extravagantes, Moore num registo mais melodramático e introspetivo. Se alguém decidisse criar um diagrama de Venn com o estilo de cada atriz em cada círculo, repararia que a zona onde ambos se interceptam partilha praticamente todas as características não só das protagonistas icónicas de Almodóvar, como também do seu cinema em geral.

Para quem acompanha o trabalho destes três mestres da sua respetiva arte, The Room Next Door representará, então, uma satisfação singular — a de estarmos a assistir a algo que simplesmente faz sentido, que condiz, tão bem quanto a mise en scène de um filme de Almodóvar.

É fascinante, também, testemunhar a forma como a obra deste cineasta tem evoluído, especialmente desde Dolor y Gloria em 2019. Permanece a mesma preocupação com as emoções humanas mais fortes e carnais, mas Almodóvar aborda-as, agora, com um maior sentido de perspetiva e serenidade. The Room Next Door é, possivelmente, o apogeu dessa transição.

Este é um filme virado para o passado, mas ausente de qualquer nostalgia, aceitando, pelo contrário, a qualidade da vida enquanto percurso imperfeito, em que o prazer e o arrependimento reinam com similar mão de ferro. É curioso, no entanto, que nessa mesma tranquilidade resida, também, a fonte de um constante sentimento de inquietação, como se as duas forças (representadas nas figura de Martha e Ingrid, respetivamente) existissem, ao longo do filme, numa luta permanente. Martha está em paz com o fim da sua vida. Já a Ingrid faz-lhe séria confusão que algo vivo possa, alguma vez, transformar-se em algo sem vida. Esta combinação, assim como o ambiente fantasmagórico proporcionado pela proximidade da morte, conferem a The Room Next Door um tom muito próprio que contempla, com o devido respeito, todas as questões éticas e filosóficas do seu controverso tema, ao mesmo tempo que faz prevalecer a abordagem artística e simbólica.

A dada altura, numa das várias e longas conversas partilhadas por Martha e Ingrid, as duas amigas meditam sobre os paralelismos e a simetria que tendem a surgir quando temos esta “visão aérea” da nossa vida. O filme traça, igualmente, linhas paralelas entre a morte do corpo humano e a morte do planeta, entre o cancro e a guerra, entre o corpo e o espírito, e entre a morte e a vida, evidenciando o tal sentido de perspetiva de que falava há pouco.

E, se o filme apresenta este nível de riqueza temática, escusado será dizer que o iguala na componente visual, como seria de esperar daquele que é um dos realizadores com maior sensibilidade cromática, estética e estrutural de todos os tempos. Com direção de fotografia assinada pelo catalão Eduard Grau na sua primeira colaboração com Almodóvar, prevalecem as cores fortes e primárias que distinguem as composições Almodóvarianas, com destaque para o contraste entre o vermelho e o verde enquanto representação da batalha entre a recusa (Ingrid) e a aceitação (Martha) da morte. Com planos que parecem pinturas e cujos detalhes contam, cada um, micro-histórias dentro da narrativa principal, The Room Next Door não foge aos padrões elevados a que o cineasta nos habituou. É sempre um prazer apreciar os seus filmes.

Posto isto, o único elemento pelo qual o filme peca é pelo seu ritmo inconsistente, numa espécie de “para arranca” frustrante, e por um primeiro ato que faz um recurso excessivo ao flashback, ainda que em nome da qualidade melodramática que tanto eleva a obra de Almodóvar.

The Room Next Door é um filme que prima pela delicadeza e subtileza com que explora um tópico estruturante e eticamente complicado — duas qualidades encontradas com fartura, também, nas assombrosas prestações de Swinton e Moore, que se tornam, assim e oficialmente, “Chicas Almodóvar.” A match made in heaven.

4.5/5
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