The Piano Lesson leva-nos até 1936 onde, no auge da Grande Depressão, seguimos as decisões e histórias da família Charles, que se concentra em decidir o que fazer com uma relíquia herdada: um piano que traz fantasmas de passados comuns e o confronto de uma família com os mesmos. Malcolm Washington, nesta sua primeira longa-metragem, mostra-nos que o talento está presente na família: tendo o irmão mais velho como protagonista (John David Washington) e o pai como produtor (Denzel Washington).
É uma história de luto que, com uma analepse, nos remete ao 4 de Julho de 1911, quando o piano é roubado dos terrenos Sutter – família que escravizou os antepassados dos protagonistas. 20 anos passados, Boy Willie Charles (John David Washington) regressa à casa da irmã, Berniece Charles (Danielle Deadwyler), acompanhado do seu fiel amigo Lymon (o extraordinário Ray Fisher) para vender o piano de família e comprar as terras do escravizador, mostrando que detém agora, por fim, a capacidade de mudar a vida que nunca conduziu. Berniece recusa-se a vender o piano que contém lágrimas, sangue, suor e gravuras dos seus antepassados numa herança que nunca será apenas material – “dinheiro não consegue comprar o valor deste piano” –, que está junto dela, na casa do tio Doaker (Samuel L. Jackson) – personagem que cruamente nos traz, sob flashbacks, a dor que é ser-se negro, aliado às histórias da família – cujo soalho ressoa as dores e range os seus pesares.
Enraizado na dificuldade que é fazer escolhas, no peso de carregar o legado da família e a sua subsistência, fazemos parte de uma disputa entre valor material e sentimental. Valor este que se traduz entre crença e vontade de vingar numa vida que estamos destinados a não ter, não pertencer, não ser, não viver. É um enredo de superação, de revolta, uma história que é como de muitas outras: talhada de violência, escravidão, revolta e com alguma mística, espelhada a cada fala. Como se pudéssemos traduzir e categorizar o filme partindo de notas musicais assentes na dor, resiliência, misticidade, família e solidão.
Contamos assim com mais uma adaptação do extraordinário August Wilson (Fences (2016) e Ma Rainey’s Black Bottom (2020)), que segue o seu Ciclo de Pittsburgh (The Pittsburgh Cycle). Ciclo este em que o dramaturgo mantém esta cidade da Pensilvânia como pano de fundo para relatar as mudanças que ocorreram ao longo do século, focando-se nas mudanças sociais que a história trouxe e nas consequências que tal originou. Embora não tenha a presença de tantos momentos musicais quanto seria expectável, Malcom entrega um relato fidedigno à vontade do dramaturgo: colocar homens e mulheres comuns, com vidas comuns, da comunidade negra como protagonistas, de uma subclasse que muito fez e terá de continuar a fazer para ver o seu trabalho, a sua arte e a sua voz ouvida.
Sem nunca sentirmos cenas pela metade e com performances coesas, o filme é sempre acompanhado de um diálogo fluido, que em nada descuida quaisquer sensibilidades. Num ritmo que peca apenas por não acompanhar a densidade do argumento, The Piano Lesson faz-nos não só querer ver e ler mais de August Wilson, mas também sentimos imediatamente a necessidade de ver mais peças em palco – num ambiente que não o conforto de uma sala de cinema ou os nossos sofás – porque a tensão e a crueza das histórias serão sempre reproduzidas como quem engole as emoções antes de as gritar.
Nunca olvidando a teatralidade necessária, The Piano Lesson é, no fim de contas, uma lição de vida, que se alia a uma imagem (belíssima) de uma tragédia que continua a passar de geração em geração, mas que esculpe em todos a necessidade de preservar as nossas raízes, não esquecendo de cortar as que o passado apodreceu.