Quando pensamos que já sabemos o que esperar de Wes Anderson, ele oferece uma granada. Por cortesia, obviamente. The Phoenician Scheme, a sua nova longa-metragem, é como um episódio de Looney Tunes capturado na visão de Wes Anderson – equilibrando a sua sensibilidade teatral com um mundo violentamente cartoonesco e hilariantemente absurdo –, onde um magnata de negócios, Zsa-zsa Korda (Benicio Del Toro), é acompanhado por uma freira, Liesl (Mia Threapleton) – a sua única filha entre nove rapazes –, e um professor norueguês de entomologia, Bjørn (Michael Cera), numa jornada pelo mundo para montar um esquema (fenício) e enganar sucessivamente os seus parceiros de investimento. Para Korda, que sofreu a sua sexta tentativa de assassinato – não se preocupem, ele sente-se seguro –, esta é uma oportunidade para criar um legado e conectar-se com a filha que despachou para um convento. Para Liesl, é uma forma de obter vingança pela morte da sua mãe, contra seja quem for o culpado.
Através de cenários gloriosamente detalhados, vibrantes cores, enquadramentos comparáveis à geometria de M. C. Escher, magníficos elencos a entregar bruscos diálogos, Wes Anderson criou um subgénero na sétima arte com o seu nome. Admitidamente, atingimos um ponto na sua carreira onde até o seu pior filme seria, no mínimo, apolíneo, estabelecendo expectativas seguras na sua filmografia. Aguardamos por uma viagem agradável, excentricamente tocante e repleta de paisagens encantadoramente harmoniosas, com algum stop motion. Tudo confirmado neste filme. É reconfortante ter esta relação com um artista, portanto paramos de tentar compreender a sua linguagem, aceitando apenas o seu lirismo. Consequentemente, sinto a necessidade de apontar que este realizador aventura-se constantemente por novos caminhos, arrisca em invulgares ideias e procura sempre elevar a sua técnica para aumentar o seu vocabulário. Se a percepção comum é resumir as suas obras a dioramas similares, eu afirmo que, como no cinema de Yasujirō Ozu, a poesia reside nos detalhes que mudam.
Supreendentemente, enquanto nas suas obras anteriores, o cineasta manipulou a estrutura das narrativas para aprofundar a própria natureza do storytelling, seja no jornalismo com The French Dispatch (2021) ou na criatividade artística em Asteroid City (2023) – possivelmente alienando uma audiência geral, The Phoenician Scheme mantém a história linear e directa (quanto possível), sendo praticamente episódica nos seus eventos. Esta construção inevitavelmente cria uma sensação de repetição dramática – os processos de comunicação com os investidores, as duplas intenções nefastas que culminam num julgamento celestial, o detalhamento vertiginoso da sua sinopse –, contudo, as gargalhadas apenas aumentam em cada localização, enaltecendo o seu processo disparatado e salientando a essência trial and error da humanidade na sua procura por redenção e significado.
Neste seu novo filme, Wes Anderson está interessado na alma. Para ser específico, na alma de um homem corrupto (financeiramente como emocionalmente), que justifica a sua visão e as suas acções com breves memórias da sua infância abandonada e do seu pai desinteressado na sua existência. Zsa-zsa é odiado por todos. Desconhecidos, colegas, amigos e familiares – a pontaria do seu filho está cada vez melhor –, ninguém parece suportar a sua pessoa, contudo, dinheiro é dinheiro. Durante os seus confrontos com o fim, Korva questiona o seu destino no tribunal de Deus, um elemento retratado literalmente com um elenco angelical e uma imagem a preto e branco fantástica que comprova Bruno Delbonnel como um excelente novo parceiro de fotografia, e alegoricamente na relação com Liesl, uma mulher com fortes crenças mas com apetites por facas brilhantes banhadas em ouro. O argumento brinca com esta dinâmica – quem influência quem? –, enquanto pai e filha tentam manter-se fiéis às suas convicções, mesmo quando os efeitos são duvidosos. Anderson ridiculariza a hipocrisia religiosa mas o seu alvo principal é a barbaridade do capitalismo, ilustrado num protagonista que interpreta a sua décima tentativa de assassinato como uma oportunidade de negócios. Sendo assim, consegue Liesl salvar a alma do seu pai? Será que o materialismo fala mais alto que Deus? Usar trabalho escravo é pecado?
Apesar da sua atmosfera exagerada, que – com a excelente performance de Benicio Del Toro (das suas melhores), representando uma pessoa divertidamente detestável com uma atitude burlescamente despreocupada – assiste em impedir Zsa-zsa de perder o seu charme caricato, até quando liberta pensamentos horrendos, o lado sentimental de Wes Anderson está sempre presente. Aliás, para um espectador distraído, os seus mundos parecem ser mais emocionalmente abastados do que as suas narrativas. No entanto, na sua estética desvendamos contos profundos sobre a frieza da alma que acolhe o quente coração. O realizador utiliza a artificialidade para espelhar a distância entre as suas personagens e os seus verdadeiros sentimentos, e a sua obsessão por controlo numa vida babélica. Os seus argumentos argutos, os seus enquadramentos glamorosos, a sua técnica surge sempre com propósito dramático. É uma combinação simetricamente perfeita entre mecanismo minucioso com o caos interior humano.
Mia Threapleton personifica este conceito, recusando expor as suas fragilidades mas deixando escapar a sua sinceridade na curiosidade mórbida interior, e especialmente na relação complicada com o seu pai. A actriz comprova ser uma grande adição à família, juntamente como Michael Cera que rouba o espectáculo com um carisma único, típico do actor que nasceu para trabalhar com o cineasta – um match made in Heaven. Wes Anderson recorre a rostos conhecidos para entregar o seu exigido contraste meticuloso mas, ultimamente, abre as portas a novas personalidades que complementam o seu lar e prolongam o seu horizonte cinemático. Richard Ayoade, Benedict Cumberbatch, Tom Hanks e Jeffrey Wright preenchem o elenco secundário como primos metafóricos que animam a festa, partilhando factos misteriosos e reveladores desta árvore genealógica, que ocupa actualmente a floresta inteira. Um dos inúmeros sinais que confirma a notável evolução refinada do artista.
The Phoenician Scheme apenas solidifica Wes Anderson como um dos melhores realizadores da sétima arte, expressando a sua imaginação inigualável que oferece conforto em bizarras e imprevisíveis narrativas – o aconchego de uma granada. Sabemos que vamos encontrar uma riqueza óptica, uma banda sonora orquestral icónica (Alexander Desplat nunca desaponta) e sublimes atuações do seu elenco confiável. Todavia, Wes Anderson nunca pode ser encarado como uma comodidade. Os seus filmes partilham cortinas, palcos e holofotes mas desvendam expressões, idiomas e palavras desconhecidas da sua linguagem impossível de ser traduzida, com novas verdades maravilhosas para decifrarmos. Inspirado pelo nascimento da sua criança, The Phoenician Scheme responde ao seu mundo kafkiano com uma história sobre a capacidade transformativa dos nossos filhos, mais poderosa do que a fé, dinheiro ou morte, de conseguirem fazer de nós melhores pessoas, ou, pelo menos, evocar contínuas tentativas – o que é o falhanço senão um período experimental?
Independentemente dos ignorantes e ineptos tech-bros acharem que a inteligência artificial captura a voz do cineasta, de espectadores desatentos reduzirem o seu cinema a monótono e repetitivo, e de críticos a proclamarem cansaço da sua singular identidade marcante, o universo de Wes Anderson continua a expandir e nunca vai parar de crescer. A realidade é que ninguém consegue fazer Wes Anderson como Wes Anderson. Não existe ninguém como Wes Anderson no cinema. Porque motivo iriamos querer que ele parasse?