“When you eat together you stick together.”
Existe um sentimento de alívio quando um realizador celebrado e com uma longa carreira termina um filme. Não por uma questão de o querermos ver o mais rápido possível (que também é verdade) mas porque poderá ser a última vez que teremos a honra de o ver na sala de cinema. Martin Scorsese referiu-se há pouco tempo sobre a pressa de criar, com uma frase que ainda hoje reverbera na minha mente – “Estou velho. Eu quero contar histórias e já não há muito mais tempo…”. Ken Loach entra neste grupo, fruto de uma obra extensa que nos acompanha desde os anos 60′ e sempre assente em contar histórias onde o realismo e as vidas daqueles em situação de maior vulnerabilidade têm o papel principal.
The Old Oak é um olhar sobre um assunto querido de Ken Loach: o presente de uma cidade construída em volta da exploração de minas, quando já fecharam as portas há décadas. É um local onde reina o desespero e as dificuldades de uma população empobrecida e sem opções de vida viáveis. Com o abandono, há habitações a preços acessíveis e que são aproveitadas para albergar famílias sírias em fuga da guerra civil no seu país. As diferenças entre as comunidades são muitas e a tensão entre ambas é inevitável. Yara (Ebla Mari) é uma dessas refugiadas, fluente em inglês e amante de fotografia, enquanto Tommy (Dave Turner) é o dono de um bar que passa dificuldades financeiras e pessoais. Forma-se entre eles uma amizade improvável e a vontade de transformar esta comunidade para algo melhor.
Mas este não é um filme apenas de Ken Loach, mas também de Paul Laverty, argumentista com quem colabora desde Carla’s Song (1996). Há algo de orgânico e indissociável entre o duo na sua demanda em mostrar as injustiças do mundo actual na Grã-Bretanha, que tão bem conhecem. Surge quase como a conclusão de uma trilogia iniciada em I, Daniel Blake (2016), continuada em Sorry We Missed You (2019) e que agora termina aqui, em The Old Oak, sobre os bodes expiatórios e a constante procura de culpa no outro pelo que vai mal na nossa vida.
Filmado em antigas localidades mineiras de Durham onde as famosas greves mineiras de 1984/85 marcaram o fim de uma época de abundância e o lento declínio destas comunidades. Há uma raiva a borbulhar nos seus habitantes que só poderia ser realmente reproduzida com os locais, presentes como actores não-profissionais, mas também devido às condições deploráveis e a falta de oportunidades presentes. Muitas vezes não conseguem transparecer os sentimentos descritos nas palavras, mas depois existem momentos mágicos em que a imersão da comunidade é tão real que transcende e emociona para além da razão.
Dave Turner, como TJ, consegue após três colaborações com Ken Loach o papel principal, como um homem em busca de redenção dos seus pecados e erros do passado. Há uma aura de derrota no seu olhar, de alguém que se importa mas desistiu de viver. Para um bombeiro reformado, como é Dave Turner, conseguir de um modo tão natural revelar a sua vulnerabilidade no ecrã e crescer com o avançar do filme, na sua intensidade, é algo de extraordinário. Yara, protagonizada por Ebla Mari, consegue-o em grande parte e tem as cenas mais tocantes do argumento, mas há algo a faltar quando relata o seu passado na Síria de modo emocional, mas a nunca parecer verdadeiro. De realçar ainda a bonita relação platónica entre os protagonistas onde o amor é mostrado de uma perspectiva raramente vista no cinema, de respeito e aceitação sem condições.
A maneira como Laverty e Loach mostram os conflitos e as realidades de ambas as comunidades da história é com uma crueza dilacerante onde a razão já não mora. Não existe um lado certo ou errado, e dominam o desespero e os corações partidos de ambas as comunidades que os levam a fechar-se entre quatro paredes. TJ tenta endireitar uma letra durante largos segundo, como sinónimo de resistência e perseverança mas, quando a letra volta a entortar meros segundos após sair de cena, é uma cruel lembrança da inevitabilidade de falhar mesmo quando o esforço e a motivação são muitos. Mas há também redenção, partilha, esperança e um sentido de comunidade construída, mesmo perante toda a adversidade. Como é apanágio de Loach o lado moralista é, por vezes, demasiado exacerbado e certos “discursos” demasiados elaborados em momentos-chave, quando um silêncio ou um olhar seriam suficientes, mas é inevitável o modo como mexe com as nossas emoções num vai-e-vem constante de alegrias e tristezas.
Força, solidariedade e resistência ecoam num estandarte durante a conclusão da história e reflectem também quem é Ken Loach nos seus mais de 60 anos de carreira. Sempre sem medo de colocar o dedo nas feridas escondidas da sociedade britânica, de nos fazer questionar o nosso papel na sociedade e da importância das nossas acções, mas também da resistência e da capacidade humana de fazer o bem mesmo nas condições mais deploráveis. Haver alguém que nos relembra isso nos tempos difíceis que correm, é uma bênção.