Depois de Lunana (2019), a sua estreia em longas-metragens, Pawo Choyning Dorji regressa ao grande ecrã, 4 anos depois, com The Monk and the Gun. Aqui, volta a centrar-se no dia-a-dia do seu país natal, o Butão, em pleno processo de mudanças profundas. Em 2008 fez a transição de uma monarquia absoluta para uma monarquia constitucional e realizou, nesse mesmo ano, as suas primeiras eleições gerais para a escolha de um líder para os destinos do país. Este filme explora, num microcosmos bem mais pequeno, as mudanças operadas numa pequena área rural, longe da capital, do processo de preparação eleitoral. Para ensinar a população a votar, é criada uma eleição fictícia com três partidos, um evento que preocupa o líder budista da aldeia, que encarrega o seu aprendiz de procurar duas armas de fogo para “emendar” a revolução inevitável. O seu objectivo acaba por colidir com um colecionador de armas americano em busca de uma arma antiga raríssima. O choque de culturas é inevitável.
Desde o momento que entramos no mundo “butanês”, segundo Pawo Choyning Dorji, somos acolhidos como se de família nos tratássemos. É um local de enorme beleza com paisagens de cortar a respiração, uma paz difícil de explicar mas onde as pessoas são o seu maior triunfo. Já em Lunana, mas também aqui neste filme, há uma inocência tão característica dos butaneses, difícil de explicar mas que nos toca profundamente. De um dia para o outro o Butão “abriu-se” ao mundo e de repente chegou a televisão, a internet e a democracia. Como espectadores vemos essa progressiva perda de inocência com a introdução de conceitos democráticos incompreendidos pela população, mas forçados na mesma pela necessidade de cumprir as metas traçadas. A sátira política ao ridículo da situação é óbvia e os momentos insólitos multiplicam-se levando a muitas gargalhadas inevitáveis, mas também levando-nos a reflectir nas limitações e evidentes problemas deste regime político. O argumento evita inteligentemente a escolha de um lado certo e apenas relata o impacto, em tempo real, que a mudança voluntária da monarquia para a democracia teve nos seus habitantes. Fica a questão, levantada pelo próprio filme, se uma revolução forçada deve realmente ser feita a qualquer preço.
Paralelo a esta problemática está a introdução do conceito de violência trazido pela cultura de armas, também ela recém-introduzida no país. Há uma sensação, desde o início, de uma ameaça que tem de ser resolvida. Tashi, um monge butânes interpretado por Tandin Wangchuk, é incumbido de encontrar duas armas pelo seu Lama. A demanda, que aparentava ser fácil de realizar, torna-se também essencial para compreender a natureza do povo butânes em que o budismo e os seus ensinamentos não estão ainda corrompidos pela sociedade moderna. Não é inocente a introdução de Ronald (Harry Einhorn), um americano, como o elemento estrangeiro da história, proveniente de uma cultura de violência e de posse de armas como um direito fundamental, surgindo habitualmente incrédulo perante a inocência deste povo e incapaz de compreender conceitos básicos de humanidade como dever ou honra. Mas nem aqui parece haver um vilão, marcado como tal, mas sim um homem preso aos seus costumes e ao poder do dinheiro como forma de atingir objectivos. Os próprios encontros e desencontros, entre as duas “facções”, que procuram o mesmo por diferentes razões, criam uma dinâmica irresistível de gato e do rato, e em que os limites do que um dos lados está disposto a fazer pelo seu “Holy Grail” são constantemente ultrapassados. E nada nos prepara para a inesperada e esperançosa reacção da “equipa da casa”.
Os próprios movimentos de câmara e a fotografia acompanham estes mundos de maneiras bastante diferentes. Desde optar entre planos longos e abertos de grande luminosidade, nos momentos mais contemplativos e de glorificação da cultura butanesa, e no uso de planos médios e mesmo close-ups geralmente em interiores quando conceitos/objectos modernos, diria mesmo extraterrestres para os butaneses, chegam a estas paisagens. A própria menção de armas ou da sua utilização parece inundar de escuridão a imagem, iluminando a tela apenas de pequenas frestas ou janelas semi-abertas. Não no sentido de a ver apenas de um prisma negativo, mas como forma de destaque da sua importância e para introduzir um elemento de mistério sobre o seu real papel na narrativa. A dúvida paira até bem ao final e o filme só beneficia com isso.
Como o tinha feito no filme anterior, Dorji opta por usar actores não profissionais para os papéis principais, e a população nos locais em que filma como extras ou actores secundários, privilegiando, e bem, o naturalismo da actuação. Em vez de interpretarem personagens, todos os que surgem no ecrã parecem vivê-las como se de si próprios se tratasse. Esse respeito e confiança no seu povo é retribuído, qual karma divino, nas emoções que provoca no espectador plenamente investido nelas desde que as vislumbra pela primeira vez.
The Monk and the Gun marca o regresso de uma voz única no panorama do cinema mundial: Pawo Choyning Dorji. Quem experimenta este still-life da vida no Butão entra numa realidade paralela onde a inocência e a espiritualidade ainda não são vistos como uma fraqueza ou fruto da ignorância. Num mundo moderno cada vez mais fracturado e movido pelo ódio e ganância, é bom saber que estes locais ainda existem. Até quando é a triste pergunta da qual não quero saber a resposta. É tempo de marcar viagem na sala de cinema mais próxima rumo ao Butão.