Na actualidade, a cozinha extravasa os limites outrora impostos e é um campo de franca inovação e é, por vezes, elevada a um nível quase artístico. Os seus principais “actores” equiparados ao estatuto de estrelas, como Marco Pierre White, Gordon Ramsay ou Heston Blumenthal (admito sou culpado de ver muito Master Chef Austrália), conhecidos mundialmente e alvos de autênticas romarias aos seus restaurantes de renome.
Mark Mylod cria em The Menu, uma estrela da cozinha de nome Julian Slowik (Ralph Fiennes). Uma degustação, altamente exclusiva para 12 pessoas, traz ao seu restaurante Hawthorne a nata da sociedade, que espera e desespera pela oportunidade de conseguir reserva. Entre eles está Tyler (Nicholas Hoult) e Margot (Anya Taylor-Joy) que esperam comida tratada como arte conceptual e uma noite memorável, mas as expectativas saem goradas de uma forma chocante. A comida e, acima de tudo, o acto de comer, é um dos grandes prazeres da vida. Mais do que um acto, é um ritual associado a um sentimento de união, partilha e é parte de todos nós.
O filme desde logo estabelece a diferença, com a opção pela exclusividade da alta cozinha, para apenas doze clientes, meticulosamente selecionados. A representar a haute cuisine temos o Chefe Slowik e é nele, e maioritariamente nos seus olhos, que The Menu reside. Ralph Fiennes revela mudanças súbitas de sentimentos de uma forma subtil e impactante, com o olhar e com mudanças na intonação vocal de uma personagem supostamente fria e calculista mas com uma raiva borbulhante e intensa. A obsessão pelo detalhe, pela perfeição e a teatralidade completam a sua personagem e confirmam Fiennes como um dos maiores actores na criação de personagens marcantes, sendo Julian Slowik mais uma para a sua extensa colecção.
A idolatria exacerbada e infantil de Slowik cabe a Tyler, interpretado por Nicholas Hoult, longe da subtileza de Fiennes mas eficaz na revelação das várias camadas de subterfúgio presentes em si. Arrisco a dizer, que há aqui uma crítica velada a este culto de personalidade dos chefes de cozinha, comparável ao de muitos ditadores do passado e do presente. O elemento disruptivo surge em Margot, o enigma desta história, interpretada por Anya Taylor-Joy (sempre magnética). As suas constantes mudanças de ritmo, de sentimentos sempre à flor-da-pele e a espiral crescente de cepticismo, revelam uma actriz que arrisca diferentes opções mas que nem sempre acerta nelas. Quem se revela nesta trama é Hong Chau no papel de Elsa, a anfitriã do Hawthorne, a emanar hostilidade e acolhimento em igual medida. Destaque final para os sous–chefs e para a equipa de cozinha às ordens de Slowik, no melhor elenco de extras de que há memória, não servindo apenas de adereço mas de um reforço claro do que o filme pretende transmitir (nunca um “Yes Chef!” no Master Chef soou tão assustador).
Mas num filme sobre comida, é a sua apresentação e a confecção, o deleite dos nossos olhos. A revelação de cada prato é pomposa, pretensiosa, emocional e de uma beleza visual que a aproxima de arte. O próprio filme pára, como forma de homenagem, e lembra os actos de uma peça teatral. Do minimalismo moderno, nos primeiros pratos, passamos a um gradual aumento da teatralidade que culmina num final memorável, digno da Grécia antiga, mas não tão apoteótico como era desejado.
Mais que uma tragédia, é também uma sátira ao mundo dos ricos e aos seus devaneios – o segundo este ano depois de Triangle of Sadness (2022) – e com um humor negro delicioso a roçar o perverso (como gosto particularmente). Relembra também outro dos grandes do ano, Speak no Evil (2022), na criação de um ambiente de tensão constante e de uma aceitação do destino como inevitável, com certeza fruto de uma costela nórdica presente em Seth Reiss e Will Tracy (argumento). Última referência no aspecto técnico para a banda sonora de Colin Stetson, o mesmo do genial Hereditary (2018), com constantes dissonâncias na melodia e com o violoncelo como actor principal. As variações melódicas com arco e os “ataques violentos” de pizzicato ampliam a angústia, enquanto a orquestra de cordas e os arranjos corais revelam a beleza sinistra e intensificam as sensações transmitidas.
Junto-me aos críticos de todo o mundo, em solidariedade, e termino com a minha versão de uma metáfora culinária que encapsula perfeitamente este filme – “Apesar de no final, The Menu, deixar um ligeiro amargo de boca, não há como negar o equilíbrio perfeito entre os diversos ingredientes que compõem esta degustação cinematográfica”.
Fui bem-sucedido?
3 comentários
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Que catarse no final!! Adorei!
Nem mais…mesmo intenso. Mas acho que é algo mais particular para os americanos, pelo ingrediente em questão, e porque aqui não se come muito