No início de The Lost Daughter chegamos a uma praia paradisíaca com um sol magnífico no que aparentam ser o início de umas férias relaxantes. As malas são deixadas apressadamente e pega-se na toalha em direção à praia, com um livro debaixo do braço. A praia está deserta, o “silêncio” reconfortante do mar acalma e o cheiro a maresia transporta-nos para tempos mais simples mas… logo é interrompido por um iate que acelera em direção à costa e de lá surge uma família barulhenta e aos gritos. A paz conquistada é rapidamente perdida e vemos no olhar de Leda (Olivia Colman), assim como no nosso, que o tempo Zen terminou. Essa alternância entre momentos de relaxamento e de stress é contínua, e deixa-nos em constante tensão de onde virá a próxima situação.
Maggie Gyllenhaal adquire os direitos e adapta o romance de Elena Ferrante, com o mesmo nome, em 2018 acabando por começar as filmagens em Setembro de 2020, em pleno período de pandemia. Conta a história de Leda (Colman), uma mulher sozinha em férias, que conhece Nina (Dakota Johnson) e a sua filha. Este encontro fortuito acaba por transportá-la de volta para o passado, para a sua própria relação com as filhas e para as decisões chocantes que tomou e a tornaram quem é agora. Conseguirá Leda encontrar em Nina a redenção que procura?
A visão da maternidade pela sociedade é um tema que ecoa e fica após o filme terminar. Não pelo sentimento implícito no tema em si, mas pela maneira como é visto por Leda, de uma sinceridade dilacerante sem os habituais clichês da maternidade como algo transformador, sempre para o positivo. É a verdade de Leda, sufocada nesse papel que a sociedade lhe impingiu e da qual não lhe pediu a opinião. Concordem ou não com o sentimento de Leda, a pressão da sociedade para uma mulher ser mãe é tão grande que a existência de um filme que discute a liberdade de escolha, da mulher, em ser mãe ou optar por não o ser, já vale pelo debate que cria num tema raramente discutido.
Mas não pensemos que é uma decisão, mesmo quando tomada de livre consciência, livre de culpa e de sentimentos contraditórios e é nisso que considero que Maggie Gyllenhaall escolheu acertadamente, ao optar por mostrar os dois mundos de Leda, o de mãe e o de mulher com as suas ambições, desejos, frustrações e medos, e se é possível ambos coexistirem sem colisão. A resposta para Leda é um sonoro “não” e é tudo visível nos olhos de Olivia Colman, mas não só. As pequenas inflexões no olhar, os esgares desiludidos ou de ira, mas também através de frases que “cortam como facas” a quem se atreve a perturbar a sua paz ou a relembra das decisões tomadas enquanto mãe. Colman, mesmo nos momentos em que não a percebemos ou compreendemos, mantém-nos presos ao seu desempenho. Vê em Nina (Dakota Johnson – assustadoramente no limite, como uma mãe desesperada sem um segundo para si, com a tensão sempre presente na voz, no olhar, no corpo) o seu alter-ego, e por isso a necessidade de a apoiar e de a salvar da situação que ela própria viveu.
O restante elenco é constituído por Ed Harris (que bom voltar a vê-lo assim tão frágil) como Lyle, um homem prestável mas incapaz de amar; Peter Sarsgaard (cativante e sedutor) como Professor Hardy, um homem apaixonado pela vida, pela arte e por Leda; Paul Mescal (perito na arte do minimal) como Will, jovem inocente sempre pronto a ajudar mas sem noção do que o rodeia; e Oliver Jackson-Cohen (o elo mais fraco num elenco fortíssimo) como Toni, um misto de sedução e masculinidade tóxica. Comum a todos estes homens é a incapacidade de compreenderem Leda e as reações erráticas que tem ao longo da narrativa. Para explicar o presente, temos o passado de Leda encarnado por Jessie Buckley (que conheci através de Charlie Kaufman no incompreendido I’m Thinking of Ending Things de 2020) num casting perto da perfeição, como Leda bem mais nova. Vemos o processo de sufoco e que tornou Leda na mulher sobre o qual o filme assenta. Absolutamente extraordinária no seu papel e uma certeza para o futuro como atriz de topo. Como contraponto de Leda temos o seu marido Joe (Jack Farthing – que começa em segundo plano mas cresce com o avançar da história), indiferente mas desesperado quando lhe convém. Mais um homem sem a mínima ideia de quem é Leda, uma constante neste filme, espectador incluído.
Não é por acaso que o maior parágrafo desta crítica são os atores, pois é nos ombros que carregam o filme com a ajuda da excelente direção de atores de Maggie Gyllenhaal. Digo direção de atores porque visualmente The Lost Daughter nada tem de extraordinário ou visualmente estimulante. A sua força reside no argumento forte (indicado justamente para o Oscar) e no elenco, encabeçado pela extraordinária Olivia Colman e Jessie Buckley, mas deixa a desejar na banda sonora, genérica e amadora, tornando até uma canção de Bon Jovi uma bênção após tamanha desilusão. Garantido é o debate que cria perante um tema tabu, totalmente ignorado pela sociedade. E claro, Olivia Colman no apogeu das suas capacidades como atriz.