Por amor? Ou por outra razão?
Admito já que sou um fã ávido do videojogo The Last of Us (2013) e por causa disso tinha os meus receios em relação a uma adaptação para cinema ou televisão de uma história tão boa, tão bem moldada aos videojogos e por si só tão cinemática em execução. Por isso, sabe tão bem vir aqui falar sobre aquela que é, muito provavelmente, a melhor adaptação do mundo do gaming para live-action até à data.
The Last of Us conta as histórias de um mundo assolado por 20 anos de uma pandemia mortal e incurável, focando-se em Joel (Pedro Pascal), um contrabandista que tem como tarefa levar e proteger uma rapariga de 14 anos, Ellie (Bella Ramsey), através dos Estados Unidos, mas contendo muito mais do que aquilo que aparenta.
A este ponto, é quase escusado mencionar que as adaptações de videojogos não costumam sair em grande qualidade, seja por qual razão ou justificação que se arranje. Mas tem havido uma sensação de que a transição para série de televisão pode funcionar melhor do que para cinema, talvez pela maior quantidade de horas que providencia para material que, por si só, vem de um media já muito extenso. E a verdade é que este original da HBO consegue provar isso de uma vez por todas, pelo menos para o género de videojogo linear como este.
Como adaptação, nos conformes de respeitar e representar o material original, fazendo mudanças casuais e pontuais no sentido da evolução, a série é de primeira qualidade. Desde o funcionamento do fungo parasita sofrer algumas alterações (por passar de uma estrutura baseada em mecânicas de jogo para live-action), até pequenas e mesmo grandes variações de personagens ou pontos de enredo, todas as decisões tomadas em torno da história são claramente ponderadas e sentidas com a maior das paixões para poder trazer ao ecrã a melhor adaptação possível de um material já tão aclamado. Há que dar valor a Neil Druckmann, criador do videojogo original, por seguir este projeto com imensa dedicação, não abdicando nunca da sua visão original para o que esta história deve conter, mesmo ao ponto de realizar alguns episódios e ser showrunner da série inteira, juntamente com Craig Mazin, que volta a acertar em cheio após o sucesso de Chernobyl (2019).
Em relação às mudanças em torno do fungo, o único sabor meio agridoce que fica é o de explicarem muito mais sobre esse funcionamento e sobre como a pandemia começou e alastrou. Tudo isto é bom, porque faz o trabalho de uma adaptação ao explorar novos pontos deste universo, mas ao fazê-lo perde o mistério que envolvia este enredo original, porque o videojogo focava-se inteiramente em duas personagens e a sua jornada num mundo devastado, mantendo os detalhes e exposições de informação a um mínimo necessário. A magia desta história nunca foi saber como o mundo se geriu neste pós-apocalipse nem como o fungo funciona cientificamente, mas sim nas emoções retratadas e nas temáticas extremamente sentimentais, pessoais e humanas, mantendo uma aura mística à volta de tudo o que se passou e que contribui para a tensão acumulada pelas personagens.
A série consegue na mesma este efeito, mas não de forma tão suave. E a mesma coisa acontece com algumas – e repito, algumas – abordagens emocionais das personagens. Existe no argumento uma maior presença de exposição sentimental através de diálogo e várias ocasiões onde personagens explicam uma emoção de forma direta, emoção essa que não estava exposta dessa forma no formato original. Talvez seja uma decisão com base em incluir um público mais mainstream através da plataforma de streaming, mas a verdade é que chega a fazer o espectador sentir-se um pouco menos perspicaz e menos capaz de interpretar a história sozinho.
Dito isto, e tendo parecido mais negativo do que aquilo que realmente é, a verdade é que The Last of Us tem, em mais de noventa por cento da sua duração, uma capacidade incrível de se destacar da maioria do conteúdo televisivo mainstream, não só pela riqueza e profundidade da sua premissa original, mas também pela coragem e irreverência com que trouxe material de um mundo visto ainda como uma arte inferior para mostrar a todos que esta história vale a pena ser contada. Não existe, em toda esta jornada, um único herói e um único vilão. Não existem boas e más pessoas, boas ou más decisões. Existem seres humanos e tudo o que faz de nós o que somos. Existe beleza, bondade e amor, raiva, maldade e medo. Tudo coabita em conjunto, nunca em separado. É possível encontrarmos encanto na violência e dor na alegria de uma criança. Não existe uma cena feliz sem haver um sabor a tristeza. Nenhum sorriso de uma personagem consegue sair sem trazer consigo o peso das suas decisões e o terror das suas consequências. A impiedade do passado de cada pessoa que vive neste mundo é abraçada pela ansiedade do que vai inevitavelmente acontecer mais tarde ou mais cedo, seja a morte ou algo muito pior. Esta é a verdadeira tensão que nos conecta a tudo o que acontece ao longo destes nove episódios, dos quais apenas dois abrandam um pouco o ritmo (sem nunca perder a sua importância narrativa ou de construção de personagem), e onde existe aquele que é um dos melhores episódios de televisão dos últimos tempos – os românticos vão saber do que falo.
Obviamente que esta história não é nada sem as suas personagens e, felizmente, todo o elenco foi perfeitamente escolhido e apareceu em cena com o seu melhor trabalho. As personagens são imensas, todas cativantes e todas diferentes entre si, mas ricas em vida, em profundidade e em relevância tanto narrativa como temática. Não vale a pena enumerar nem exaltar alguma em específico porque todas merecem o seu lugar ao sol e o mesmo nível de atenção. Mas está claro que Joel e Ellie são o foco das câmaras e é tão bom vê-los tão bem representados. Pedro Pascal e Bella Ramsey literalmente são Joel e Ellie durante todo o seu tempo de antena, desde as idiossincrasias individuais de cada um, à dinâmica entre os dois e a química que emanam desde o primeiro segundo juntos. Pedro Pascal consegue trazer à vida um homem que outrora possuiu uma alma pessoal e moral, mas que está mergulhado num mundo que faz florescer a mágoa que o caracteriza do início ao fim. Já Bella Ramsey, desde a sua primeira ação em câmara, dá à luz uma rebeldia inocente tão intrínseca de uma rapariga que nasceu nesta vida desolada e não conheceu outra, mas tem a curiosidade e energia para querer saber como tudo funcionava. As suas almas bonitas, repletas de boas intenções e os melhores sentimentos, revelam-se quebradas por dor, violência e amor, e as duas conectam-se de maneiras igualmente tão belas e tão horrendas ao mesmo tempo.
The Last of Us é uma soberba série de televisão que consegue manter o nível de um dos melhores guiões e uma das histórias mais humanas alguma vez contadas. Revitaliza-se ao adaptar-se à estrutura a que se propõe, sem nunca perder o foco nem o respeito pelo que a tornou uma narrativa tão importante e relevante. Merece atenção, merece carinho e talvez seja um sinal para o que pode vir no futuro, tanto para si na forma de novas temporadas, como para o mundo das adaptações baseadas em videojogos.
3 comentários
[…] que já estão muito utilizadas no género pós-apocalíptico, como por exemplo em obras como The Last of Us (2023-). Impinge uma premissa interessante ao ser mais realista, mas não parece tirar um bom proveito […]
[…] The Last of Us (HBO/Max) […]
[…] Principal, ocupando também a maioria da categoria de Melhor Actor Secundário com 4 nomeados. The Last of Us (2023-) conseguiu 24 nomeações, enquanto The White Lotus (2021-2024) obteve 23 nomeações. Este […]