Fui completamente às escuras para este filme. M-e-s-m-o. Não vi trailers. Não li sinopses. Não li nenhuma entrevista. Nem sequer me dei ao trabalho de procurar qualquer tipo de informação adicional. A única coisa que sabia sobre o filme era que o Adam Driver entrava, e que era um filme do Ridley Scott. Ah: e que se passava na Idade Média. Eu não gosto da Idade Média. Não gosto de Lord of the Rings (2001-2003). Não gosto de Game of Thrones (2011-2019), e ainda que estes sejam fantasias sobre alicerces de época mais ou menos reais, não é por um filme ser mais verosímil ao real que, à partida, me irá deixar mais interessado. E em parte foi por isto que achei que ir ver este filme pudesse ser uma experiência interessante: um pretexto para pôr as minhas pupilas gustativas cinematográficas à prova com sabores de que não gosto assim tanto.
Enter: The Last Duel. Baseado numa história real – quão real é, contudo, não faço a menor ideia, ainda para mais tendo em conta a maneira leviana com a qual Hollywood se apropria frequentemente desta expressão -, sobre um dos últimos duelos judiciais a ter sido oficialmente reconhecido em França (ano: 1386). Pequenas curiosidades históricas à parte, e voltando para o tema que aqui nos traz, o mais recente filme de Ridley Scott relata este episódio da história enquadrado pelo “triângulo” amoroso – desamoroso talvez tivesse sido uma escolha de palavras mais apropriada e feliz – entre Sir Jean de Carrouges (interpretado por Matt Damon), Jacques Le Gris (interpretado por Adam Driver) e Marguerite de Carrouges (interpretada por Ben Affleck. Just kidding: interpretada por Jodie Comer. Mas o Ben Affleck também cá esta, ainda que num supporting role: o de best buddy de Jacques Le Gris, Pierre d’Alençon), e assente num episódio bem menos amoroso desta “relação”: a violação desta última personagem.
É uma história contada de forma tripartida (uma parte para cada vértice deste triângulo), em que cada uma destas secções de filme nos dá a conhecer cada uma das três versões distintas da realidade que tem o mesmo ponto de convergência: a violação de Marguerite. Três verdades, de três pessoas, fundamentadas por três pontos de vista mais ou menos parciais, expostos de forma mais ou menos interessante, pelos interlocutores destes eventos, onde revisitamos a mesma realidade enquadrada pelos três pontos de vista de quem a experienciou.
Há muitos pontos meritórios neste filme: o world building é muito bem conseguido (sinto que estou na França do século XIV); o grotesco e visceral que existe no nosso imaginário colectivo também; as batalhas que nos parecem ter sido épicos de selvageria e desumanidade também; a atmosfera geral da idade média idem. A essência da Era está toda lá. O que me parece que não está lá, e que frequentemente me quebra a suspensão da crença (suspension of belief) são os sotaques de Ben Affleck e (de forma ainda mais flagrante) de Matt Damon, que, sempre que aparecem em cena, me fazem interrogar sobre o porquê de estarem dois Americanos na França Medieval do Séc. XIV, ao em vez manter a minha atenção aos contornos dos eventos e da história.
Mas fora isto, é também, e em realidade, um filme para todos os gostos (mas não para toda a família, porque bom, o rating do filme de “R” não deixa grande margem para dúvidas de que muito provavelmente não será apropriado para a prima/o ou irmã/o de 8 anos), já que encerra em aquilo que me parecem ser também três tipologias possíveis para um filme deste género, com três tipos de abordagem narrativa igualmente diversos, e com variáveis e crescentes níveis de interesse na progressão das suas aproximadamente duas horas e meia de duração. Há uma parte da história que poderia ser um filme de acção medieval – a história segundo Jean de Carrouges – com overtones ocasionais de 300 (2006), outra que poderia ser um romance medieval – a história segundo Jacques Le Gris –, e outra que poderia ser um thriller psicológico – a história segundo Marguerite de Carrouges -. Poderia ser um filme esquizofrénico, justamente pela justaposição destas diferentes formas de ver – que foram também escritas por diferentes pessoas: Matt Damon, Ben Affleck e Nicole Holofcener -, mas neste contexto é não só perfeitamente razoável, como também estritamente necessário, já que vincula a natureza plástica da verdade segundo cada sujeito.
Este último segmento de história é o mais sólido e também o mais interessante, mas isto também pode ser a minha parcialidade a falar mais alto (já que thrillers psicológicos são um dos meus pet peeves). Mas ao mesmo tempo, poderá também não ser só isso. Poderá ser, em realidade, uma tentativa de o realizador nos fazer simpatizar mais com este segmento do filme, e também de exacerbar a componente que lhe é mais crua e também mais verídica: a da sua verdade, e da problemática e das limitações daquilo que é ser-se mulher (num mundo onde o #metoo estava ainda a anos-luz). Há uma sensação de proto-sufragismo que me parece existir, mas não de uma forma expiatória, já que faz sentido quer para a história, quer para a personagem, quer, em parte, para o público.
Para mim, o The Last Duel é mais um estudo aprofundado em espelho sobre as noções de verdade, de perceção e de parcialidade, do que propriamente um drama épico medieval – ainda que o backdrop e os fundamentos da história sejam forçosamente esses -. E ainda bem, porque se fosse mais isso, acho que não teria gostado de todo. Mas tal como com os resultados dos duelos na França Medieval, também o facto de eu ter gostado do filme deve ter sido um Desígnio Divino.