Um exímio “meh”
Primeiramente, deixem-me que vos diga que é uma delícia poder ver um novo filme do David Fincher na sala de cinema, visto que o seu último, Mank (2020), saiu exclusivamente na Netflix em plena pandemia, e que o anterior a esse, Gone Girl (2014), data de há 9 anos atrás. Apesar desta nova obra também estrear na Netflix logo em lançamento, penso que todos podemos concordar que Fincher merece pelo menos uma ida à sala mais próxima.
Assim, The Killer é a nova longa-metragem do realizador que já esgotei o nome em apenas um parágrafo, escrita por Andrew Kevin Walker e baseada numa banda-desenhada francesa com o mesmo título, da autoria de Alexis Nolent e Luc Jacamon. Desta vez, o protagonista é Michael Fassbender no papel de um assassino profissional preciso, sem nome e aparentemente frio e certo nos seus métodos. Isto é, até um trabalho virar para o torto e este encontrar-se emaranhado numa corrida pelo mundo para tentar resolver a alhada onde se meteu, enquanto jura a si mesmo que nada disso é pessoal.
A introdução/primeiro ato contém tudo o que engloba este filme, desde o estilo à estrutura, mas é tão bem conseguida que se torna no pico de toda a longa-metragem. Consiste apenas na preparação de mais um trabalho para o protagonista, bem como as longas horas de espera e paciência que requer, narradas ponderadamente por Fassbender, que nos introduz desde o início à mente deste hitman. A partir daquilo que se mostra ser por si só uma incrível curta-metragem, dá para identificar que se avizinha um thriller psicológico com ambiente e inspiração do neo-noir. Esta abordagem em modo de estudo de personagem é das maiores forças deste filme, pois foge das responsabilidades de ter de apresentar um enredo incrivelmente cativante e cheio de twists. Argumenta-se apenas como um simples guia e acompanhante deste protagonista, com vista privada para o seu interior complexo.
Tudo isto, juntamente com a já esperada mestria técnica que Fincher exige, faz com que toda a obra esteja cozinhada com uma tensão palpável e fascinantemente bem doseada. Seja a nível momentâneo ou no quadro geral da narrativa, Fincher consegue manter-nos ansiosos e agarrados num nível saboroso e saudável, nem que seja pelo simples facto de nos fazer simpatizar ou mesmo torcer por uma pessoa moralmente dúbia, se não mesmo horrível.
Esta tensão constante é construída através de todo o corpo técnico do filme. Os movimentos de câmara são, como de costume para o realizador, de uma precisão e cuidado que fariam inveja ao próprio protagonista. O resto da fotografia é bem acompanhada por um design de som arrojado e chamativo, principalmente no que toca ao uso de músicas tanto para o filme em si, como o realce que dá à importância que têm para o nosso assassino. A própria escolha das faixas é interessante e fazem um bom par com a banda sonora eletrizante de Trent Reznor e Atticus Ross, sendo fortes alicerces do ambiente tenso, mas ao mesmo tempo vivo e credível, que a personagem principal incorpora. Esta tensão é mantida num patamar ameno, atingindo o pico e subsequente êxtase apenas uma vez durante estas duas horas, na única cena de ação do filme, cena essa que está muito sólida e justificada, com uma excelente coreografia e uma câmara que não só complementa como até enaltece os melhores pontos da luta.
É interessante que é precisamente no campo técnico onde se começam a notar os defeitos desta obra, ou o que lhe falta. Os efeitos visuais, nas poucas ocasiões em que aparecem, são assustadoramente amadores, notando-se a plasticidade dos objetos replicados. Apesar de ser um filme que demonstra querer levar o seu tempo com as ações e ir com calma na sua história, a montagem fica muito aquém desta necessidade expressada, parecendo querer cortar abruptamente em vários casos e admitindo um ritmo muito estranho que entra em conflito consigo próprio em grande parte da duração. Mas a maior fraqueza desta longa-metragem é claramente o seu argumento.
Esta história é muito genérica e até cliché, e pouco é feito para tentar apimentar a coisa ou dar-lhe uma existência própria, se bem que, como já referido, o filme acaba por se focar em ser uma análise e desconstrução da romantização de um hitman, o que é uma ideia muito intrigante. A questão aqui é que a narrativa acaba por não chegar a lado nenhum, ficando o sentimento de estar longe de atingir o seu potencial de profundidade emocional ou intelectual. É interessante que o guião seja imparcial com o seu protagonista, não escolhendo oferecer recompensa ou castigo com base no peso ético das suas ações, e fazendo mais uma observação do que um arco de personagem. Mas por estas mesmas razões é que deixa pena vê-lo voar tão baixo, com pequenas asas construídas de ideias pré-concebidas do que uma estrutura de narrativa de um thriller deve ser.
No entanto, consegue ainda ser cativante na forma como apresenta a sua narrativa, fazendo-a totalmente através do ponto de vista do protagonista, tornando-a tão humana e tão psicopata quanto o seu narrador pede que seja. Ver o mesmo a ser tão racional e lógico mas ao mesmo tempo contar as suas próprias mentiras que ele mesmo quer acreditar, é de uma delícia doentia. Obviamente que aqui Michael Fassbender é o principal impulsionador, tornando tudo isto credível e bem elaborado. Dá vida a uma personagem tão viva e colorida mas ao mesmo tempo tão negra e gelada, aproveitando o seu número reduzido de falas para dizer imenso com tão pouca palavra, mas com muita confiança na sua corporalidade. Pena que os poucos diálogos existentes sejam fraquíssimos, parecendo escritos por outra pessoa com menos destreza para a coisa, saindo básicos e mortos. Infelizmente os atores (ou a direção dos mesmos) não foi muito competente para conseguir ultrapassar estes percalços e o ritmo das suas falas é muito falso e notório por isso mesmo, com pausas e entoações pouco naturais. A única que se safa é Tilda Swinton, sendo carismática como sempre, e apresentando a qualidade necessária para criar algo com tão pouca matéria-prima. Conseguiu ser a única a trazer uma dinâmica cativante que jogasse com o silêncio ensurdecedor de Fassbender.
A verdade é que este é um filme extraordinário e comum ao mesmo tempo. É um excelente thriller comercial, um bom lazer de domingo à tarde, e no que toca a esta categoria é de alta qualidade com uma boa dose de entretenimento e algum estímulo mental. Por pena de quem esperava algo mais profundo e complexo, este filme tinha o potencial para tal mas parece que nunca quis lá chegar, afastando-se dos melhores e mais icónicos trabalhos de Fincher. Para quem gosta de algo que mostra os métodos e planeamentos de um assassino a soldo, ao estilo da saga de videojogos Hitman, aqui está o melhor filme que os fãs dessa personagem nunca tiveram. Considerem essa fantasia realizada.