Nomeado ao Oscar de Melhor Filme Internacional, Pigen med nålen ou The Girl with the Needle (título global), de Magnus von Horn, é uma viagem negra ao centro mais profundo e obscuro do ser humano. Baseia todo o seu terror psicológico não em figuras do oculto e seres sobrenaturais, mas na miséria e na violência interpessoais e sociais.
A liderá-lo está a atriz dinamarquesa Vic Carmen Sonne como Karoline, uma costureira fabril cujo marido desaparece na Primeira Grande Guerra, deixando-a incapaz de pagar a renda do pequeno apartamento que alugavam juntos. A história evolve rapidamente depois de Karoline ser despejada, levando-a, por entre várias peripécias, a uma gravidez indesejada. Esta, por sua vez, leva-a até Dagmar Overby (Trine Dyrholm), uma mulher mais velha que, apesar de parecer querer ajudar, esconde um segredo macabro.
Overby é baseada numa personagem histórica dinamarquesa que deixaremos aqui por esclarecer para manter o mistério que tanto define este The Girl with the Needle. No entanto, é importante mencionar que esta associação a acontecimentos reais permite classificar o filme de von Horn como true crime, o que poderá, sem dúvida, trazer mais olhos curiosos a um filme polaco-dinamarquês a preto e branco, passado no início do século XX.
É precisamente esta capacidade de crossover entre géneros que faz deste filme um triunfo. Tem aspetos de terror gótico, de drama histórico, de true crime, e de cinema arthouse europeu, que, combinados, criam um poderoso retrato da psique humana, especificamente no que respeita às suas respostas à pobreza, tanto material como de espírito.
O próprio cenário do pós-guerra europeu proporciona especificidades socioeconómicas à história muito propícias à depravação de costumes, aos surtos psicóticos, e à inópia. Este, aliado à banda sonora estridente e cavernosa de Frederikke Hoffmeier e à fotografia a preto e branco suja e sombria de Michał Dymek (EO (2022), A Real Pain (2024)), contribui para o ambiente de terror que permeia todo o filme.
Karoline é, igualmente, a protagonista perfeita para exacerbar a hostilidade deste mundo criado por von Horn em The Girl with the Needle. Completamente vulnerável e algo inocente, Karoline deixa-se levar e enganar, seja pelo seu patrão bajulador (Joachim Fjelstrup) seja por Dagmar. A sua evolução em direção à sua emancipação e autodeterminação é o fio condutor deste filme. A forma como ela lida com os abusos de que é vítima vai desde a complacência, ao desespero, à resiliência, e, finalmente, à esperança e à bondade enquanto antídotos para o veneno social que a rodeia. Este último é precisamente o conceito principal do filme de von Horn.
Entretanto, borbulha sob a superfície toda uma temática relacionada com os direitos reprodutivos da mulher, diretamente ligada à gravidez problemática de Karoline. The Girl with the Needle apresenta uma mensagem muito forte e algo ambígua sobre a importância das gravidezes seguras, do apoio às grávidas e às mães e sobre o perigo da clandestinidade na procura de soluções para gravidezes indesejadas, seja através do aborto ou do abandono das crianças recém-nascidas. É uma história altamente carregada, impressionante e chocante, mas que, e é sempre importante reiterar, retira praticamente todos os seus elementos de acontecimentos reais. The Girl with the Needle é tanto mais aterrorizante por isso mesmo.
Apesar de cair num ritmo um pouco arrastado em certos momentos, Von Horn conduz este complexo e profundo enredo com uma delicadeza espantosa, mantendo um foco incisivo na identidade do filme, mesmo quando a história evolve por caminhos surrealistas. Juntamente com Dymek, o realizador dinamarquês constrói uma linguagem visual distinta cheia de planos medonhos que ficam com o espectador durante dias após a visualização.
Para esta permanência contribuem também as feições incrivelmente expressivas da sua leading lady, Sonne, cuja cara, muito como a sequência de abertura do filme, se contorce em todas as direções, transmitindo qualquer micro sentimento com uma clareza estonteante. No seu oposto direto, encontramos Dyrholm, um nome já ressonante do cinema e televisão nórdicos, que entrega uma atuação desarmantemente estoica de um controlo extraordinário, escolhendo, com mestria, os momentos certos para revelar pequenas fissuras na sua gélida fachada matriarcal.
Por isso mesmo, todas as cenas que as atrizes partilham — naturalmente impulsionadas por um argumento e uma realização quase clínicos na forma como alimentam a tensão — suscitam uma inquietação muito própria, como se algo estivesse prestes a estalar a qualquer instante. Os momentos em que as suas personalidades antitéticas se encontram num equilíbrio entre a brandura de Karoline e a severidade de Dagmar constituem muitos dos pontos altos do filme.
Sendo complicado analisar outros elementos narrativos sem estragar muitas das surpresas que The Girl with the Needle reserva, resta-me insistir na sua qualidade, consistência, riqueza temática e capacidade de atrair muitos públicos diferentes, dos geeks do terror e do true crime aos entusiastas do cinema de autor europeu. É um filme único e arrojado com algo a dizer e performances de cortar a respiração — e pouco mais se lhe pode exigir.
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