The Fabelmans (2022)

de Pedro Ginja

“Luzes, Câmara, Acção”

A primeira ida ao cinema, em criança, é algo que tem perdido cada vez mais a importância que teve no passado. Nos dias de hoje, o fácil acesso a entretenimento, à distância de um click, tem retirado grande parte da magia do que era um dos primeiros contactos com esta arte para muitas crianças. Tive a sorte de viver num tempo em que ir à sala de cinema era um grande evento quando ainda havia cinemas de bairro – como no sítio onde cresci. Indiana Jones and the Temple of Doom (1984) foi o meu primeiro filme, também de Spielberg curiosamente, numa matiné de domingo com a sala esgotada e um burburinho de antecipação nervoso. A luz apaga, assobios em delírio. O projector começa a rolar e a luz a bater no ecrã; uma salva de palmas ensurdecedora. “And the show begins…”

Estamos no mundo dos The Fabelmans. O filme acompanha a vida de Sam Fabelman (heterónimo de Spielberg) e a sua relação com a 7ª arte, desde os anos formativos até ao início da idade adulta, enquanto navega os tumultos familiares que surgem após a revelação de um segredo. E mais pessoal que isto não poderia ser.

Spielberg confessou que a vontade de contar esta história já existia há muito tempo. A sua preocupação principal, em contá-la, era a invasão da sua privacidade, uma das coisas que mais preza. Acabaram por ser dois eventos traumáticos, com a morte da mãe (em 2017) e depois do pai (em 2020), que arrancaram a decisão de começar a escrever esta memória da sua vida. E logo se percebe a vulnerabilidade e o amor total presentes neste argumento. Desde os momentos iniciais, numa sala de cinema, há um magnetismo que nos puxa ao ecrã; uma espécie de pulsão de não desviar o olhar da tela. Pelos olhos de uma criança, Spielberg retrata aquela sensação de deslumbramento, de ver algo belo e da novidade, e passa-a para o espectador. Logo ali, nos primeiros 5 minutos, estamos rendidos a esta história, como eu há 36 anos atrás. É a nostalgia de um tempo em que o cinema era maior, que Spielberg nos presenteia neste início fulgurante.

“Family… Art. It will tear you in two.”

Somos introduzidos, neste espaço de tempo, a Mitzi Fabelman (Michelle Williams) e a Burt Fabelman (Paul Dano), em polos opostos na maneira de ver a vida. É estabelecida a oposição entre Artistas e Cientistas durante todo o filme e o preço, difícil, que a arte tem sobre a família. Michelle Williams cria em Mitzi uma mulher em constante luta entre o seu papel de mãe e a sua alma de artista. Michelle é o catalisador emocional da história e consegue transmitir essa sensação de um artista perdido na sua arte, sempre com os sentimentos à flor da pele. Intempestiva, radical, inspiradora e etérea (lembrando a personagem Sininho, de Julia Roberts, em Hook (1991)), Michelle Williams comove-nos profundamente e é a estrela mais cintilante num elenco inspirado. Paul Dano tem o lado pior desta equação para um ator, interpretando um homem sério, objectivo e pragmático com contenção e uma competência extraordinária, mesmo nos momentos mais dramáticos em que a tentação seria cair em overacting para se exibir. Gabriel Labelle como Steven… Desculpem, Sam Fabelman, é marcante pela determinação, engenho e o seu carisma nervoso, perfeito para os anos formativos de um jovem em descoberta. Seth Rogen aparece irreconhecível, em territórios que não são os dele, mas não desilude e tem oportunidades de brilhar. As próprias irmãs têm o seu espaço, apesar de extremamente curto, para mostrar talento. Quem chega como um furacão e rouba o “spotlight” de todos, nos breves momentos em que surge, é Judd Hirsch no papel do Tio Boris. Uma espécie de arauto da desgraça/esperança, para um impressionável Sam, que traz a boa nova de ser artista mas também o alto preço a pagar por essa bênção – Absolutamente estrondoso (Deem um Oscar a este homem).

“We are Junkies. Art is our drug.”

Há uma reverência comovente pela experiência de ver cinema e pela arte cinematográfica. Desde o poder destrutivo da edição para reescrever, ou alterar profundamente como olhamos para a nossa vida, e da sua importância para moldar os sentimentos dos que por ela são retratados. Existem inúmeros shots de “edição” nos tempos em que o corte e costura, literalmente, dominavam essa arte de emocionar as massas. Mesmo quem, como eu, nunca teve acesso a película tem neste vislumbre, através das mãos de Sam, da beleza do processo e de uma história que importa preservar na memória. Nem só desta glorificação da edição vive o filme (principalmente nas várias curtas reveladas durante os anos formativos de Spielberg) mas também do engenho na procura de soluções no cinema e de como esse processo é mágico, por si só.

Ajuda também ter Janusz Kaminski na direcção de fotografia com o exímio uso da luz para destacar o que realmente interessa. Não parece haver qualquer plano desperdiçado, ou fora de sítio, mas há tempo para deixar fluir a beleza quando a história assim o pede. A própria decisão de filmar nos vários formatos de 8mm, 16mm e em digital revela ainda mais o investimento e, acima de tudo, talento de Kaminski para trazer aos dias de hoje, o que era norma no passado – um verdadeiro serviço público da história do cinema. Na música, é impossível não associar o nome de John Williams ao trabalho cinematográfico de Spielberg, com orquestrações marcantes que fazem parte da história do cinema. Aqui a opção recai sobre um minimalismo ao piano, com o ocasional conjunto de cordas, que reforça a emotividade e intensifica as sensações do espectador. Já desde o violino de Schindler’s List (1993) que um instrumento não manipulava os meus canais lacrimais de forma tão soberba.

“What was your favorite part?”

O brilhantismo e o impacto só seriam possíveis com o ingrediente mais importante. E esse, Spielberg tem em quantidades industriais – Coração. Com um argumento escrito durante o período inicial da pandemia, consegue aliar o coração a uma necessidade de catarse emocional. Nunca Spielberg se expôs de modo tão pessoal, como nesta história, e esse sentimento contamina cada um dos 24fps que compõe o filme. Faltava agora um final para uma história (ainda) sem final à vista, e Spielberg recorre a um momento absolutamente extraordinário. É perfeito ao invocar a passagem de testemunho da idade de ouro de Hollywood para o “novo sangue” ansioso por mudar Hollywood. Tem porventura, não o mais belo, mas o mais inspirado plano final do ano.

The Fabelmans mostra-nos a beleza em seguir os nossos sonhos mas também o preço a pagar pela ousadia de escolher a arte como forma de vida. Nostálgico, intemporal e com o coração nas mãos, Spielberg revela-se na sua essência e confirma a clara inspiração recente após o, também, brilhante West Side Story (2021).

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