“It stops working for everybody if one person isn’t present.“
A ideia de casa é algo muito precioso para todos nós. A sua definição, no entanto, parece ter inúmeras possibilidades e as prioridades, em qual cada um mais se revê, variam de pessoa para pessoa. Para uns é o local físico e seguro onde podemos descansar em paz longe dos olhares do mundo. Para outros é o país que nos viu nascer e que chamamos de pátria. Ou, finalmente, aqueles que a encontram naquela pessoa especial, esteja onde ela estiver aí temos a nossa casa. Em The End we Start From essa interrogação paira sobre todas as personagens com quem nos cruzamos. Onde está a nossa casa? Como a encontrar? E quando a encontrar-mos como ter a certeza de que estamos no sítio certo?
Encontramos a personagem de Jodie Comer, no início do filme, no seu porto de abrigo, a sua casa num bairro londrino sozinha e prestes a dar à luz. O sentimento de felicidade enquanto a sua vida se desenrola é inegável. Está prestes a entrar numa nova fase da vida e a felicidade é transbordante. O mundo à sua volta tem, no entanto, outros planos, com um longo período de chuvas torrenciais que começam a engolir cidades inteiras. Com um filho nos braços e sem casa para onde voltar parte em busca um lugar para ficar. Este é The End we Start From, a última longa-metragem de Mahalia Bello, baseado no livro homónimo de Megan Hunter.
É fácil encontrar paralelos com a situação actual do nosso planeta em que os sinais de um aquecimento global cada vez mais acelerado são evidentes. A desregulação do tempo cria uma grande instabilidade temporal e que, no filme, se traduz num dilúvio que parece não terminar. As conotações bíblicas são evidentes e fáceis de associar ao Antigo Testamento e à história de Noé e da construção da sua arca. A metáfora de um dilúvio é evidente como forma de “limpar” os pecados com a destruição dos pecadores e o salvamento dos justos e dos inocentes. Isto segundo Deus, mas no caso do argumento de Alice Birch as conotações são menos claras e bem mais devastadoras.
Ao juntar o caos inevitável de uma catástrofe natural e as dúvidas inerentes a uma primeira gravidez tudo parece ser amplificado a um grau, por vezes, difícil de suportar para a personagem de Jodie Comer. A escolha de não dar um nome à sua personagem, e de vermos o desenrolar da história apenas pelo que ela vê e sente, torna-nos cúmplices e solidários com o seu destino mas também com o seu sofrimento. A desumanização desta sociedade fictícia face a um desastre natural de proporções inimagináveis é particularmente difícil de engolir porque os paralelos com a situação mundial actual são evidentes. Este “salve-se quem puder”, que permeia e parece submergir o espectador, encontra ecos em inúmeros conflitos mundiais passados ou presentes, em que a vida humana deixa de ser inviolável e homens, mulheres e até crianças tornam-se meros números e nomes em listas intermináveis de vítimas inocentes. Estaremos já condenados, como é referido no filme, a destruir-nos uns aos outros inevitavelmente? Fazer esta pergunta em pleno filme acaba por ser o seu mais duro golpe pois mesmo sem um desastre natural desta envergadura já alguns o fazem impunemente.
Existem, felizmente, momentos de esperança e de compaixão no meio desta avalanche de sentimentos negativos. Muito graças à interpretação fenomenal de Jodie Comer e da sua capacidade em extrair beleza durante o lento desmoronar do seu mundo. A cada momento de desespero, medo e incerteza encontramos também sorrisos, gargalhadas e uma infinidade de sensações proferidas através do seu olhar expressivo e na sua linguagem corporal que aqui adquire uma importância cada vez maior com o avançar do filme. Existem outras personagens como o seu marido, chamado de R, interpretado por Joel Fry, omnipresente mesmo na ausência física, nos pensamentos e acções da sua mulher, mas que não consegue reflectir essa importância com uma interpretação apagada principalmente nos momentos mais dramáticos onde se pedia bem mais intensidade.
Existem, no entanto, grandes actores em pequenos papéis, com claro destaque para O, interpretada por Katherine Waterston, que surge com uma lufada de ar fresco e revitaliza a história que se encontrava numa espiral de dramatismo inconsequente para a narrativa. Com a sua resiliência, boa disposição e muito coração consegue “reanimar” tanto a personagem de Jodie Comer como salvar o filme de ser mais um entre muitos outros filmes acerca de desastres naturais. Um cameo delicioso de Benedict Cumberbatch, como AB, numa cena pequena mas impactante para a história, acaba mesmo por convencer o espectador a acreditar estar perante algo especial mesmo que algumas outras situações o contradigam.
Na direcção de fotografia, a cumprir serviços mínimos, existe um pequeno oásis de inspiração, perto do final, quando a água é usada como um portal entre realidade diferentes e distantes e mostra mais do que o literal do restante filme. Isto é conseguido através de um inteligente uso da câmara alternando entre perspectivas debaixo e à superfície da água ao mesmo tempo que brinca com o espaço e o tempo mas infelizmente dura meros segundos. Em sintonia de apenas cumprir com o essencial temos o design de som e a banda sonora desinspirada ambos a lembrar apenas um telefilme respeitável quando a qualidade do elenco principal e secundário pedia bem mais.
The End we Start From é um disaster movie assente num ponto de vista pouco visto no cinema, a vida de uma mulher após dar à luz. Jodie Comer encarna essa mulher e infunde-a com uma resiliência e força difícil de ignorar. Com o seu desempenho extraordinário e a ajuda de um elenco secundário empenhado consegue-se salvar da mediocridade este filme carente da atenção visual e sonora que os seus intérpretes mereciam. A desilusão acaba por se instalar, quando as escolhas perto do final não são as mais apropriadas, mas fica a sensação, no belíssimo plano final, de que Mahalia Bello tem algo de especial a borbulhar por ali. Haja oportunidade para o poder mostrar numa próxima vez.