Na sua segunda incursão como realizador, com The Dead Don’t Hurt (Até ao Fim do Mundo), Viggo Mortensen desmantela as convenções do western ao centrar a narrativa numa mulher, cuja força reside na sua resiliência emocional e determinação, em vez de recorrer a feitos heróicos ou privilégios masculinos. Para além de realizar, Mortensen assina o argumento, a produção, a banda sonora e ainda protagoniza parte da obra, evidenciando um domínio absoluto sobre a narrativa e uma abordagem criativa multifacetada. Filmado nas imponentes paisagens de Durango, no México – um cenário mítico que acolheu clássicos como The Good, The Bad and The Ugly (O Bom, o Mau e o Vilão, 1966) e The Wild Bunch (A Quadrilha Selvagem, 1969) -, o filme desenrola-se entre os desfiladeiros erodidos do Nevada do século XIX, oferecendo um retrato íntimo e inovador de amor e sobrevivência.
The Dead Don’t Hurt é uma história de amor atípica, centrada em Vivienne Le Coudy (Vicky Krieps), uma florista franco-canadiana, e Holger Olsen (Viggo Mortensen), um carpinteiro dinamarquês. O encontro romântico dos dois em São Francisco leva-os a procurar uma nova vida num recanto remoto do Nevada, longe dos tumultos da cidade. No entanto, a Guerra Civil norte-americana irrompe como uma força implacável e ameaça a felicidade do casal, quando Holger sente a obrigação moral de se alistar, deixando Vivienne para enfrentar não só a solidão, mas também as ameaças de um homem poderoso. Ao entrelaçar a brutalidade do western com uma abordagem emocionalmente complexa, o filme coloca em evidência a luta de Vivienne para manter a sua autonomia e dignidade, enquanto navega num mundo dominado pela violência masculina.
The Dead Don’t Hurt não procura reinventar o western, mas utiliza os seus elementos de forma subversiva. Há cavaleiros, saloons e tiroteios, mas tudo isto serve como pano de fundo para questões mais profundas. Mortensen, por sua vez, insere com outros elementos mais contemporâneos no género, associados ao protagonismo feminino e ao código moral (e até mesmo a aparição da icónica espada Andúril, um discreto aceno à sua carreira em The Lord of the Rings [2001-2003]). A violência, quando presente, é crua e desprovida do glamour habitual do western, deslocando o foco dos confrontos épicos para as batalhas internas e silenciosas das personagens.
Enquanto Mortensen interpreta Holger, um homem enigmático e de poucas palavras, Krieps rouba a cena com a sua Vivienne. Conhecida pelas suas performances fortes em filmes como Phantom Thread (Linha Fantasma, 2017) e Corsage (Espírito Inquieto, 2022), Krieps dá vida a uma mulher que não se conforma com as limitações impostas pela sociedade da época – é uma figura de resistência, na qual a força e a vulnerabilidade coexistem, enfrentando o machismo e a hostilidade do Nevada. Mortensen faz uma crítica ao mito do Oeste Americano, ao destacar a jornada de Vivienne não apenas como mulher, mas também como imigrante, lutando por um lugar numa terra que, embora prometa liberdade, oferece acima de tudo desafios.
Ao alternar entre o passado e o presente, Mortensen opta por uma abordagem narrativa em que as emoções e as memórias das personagens têm primazia sobre a ação, contudo, o seu ritmo deliberadamente lento e a sua estrutura não linear, acabam por ser os elementos mais polarizantes deste filme. Ainda que os saltos temporais contribuam para um peso renovado do desfecho, por vezes enfraquecem a tensão dramática e diluem o impacto de cenas-chave.
The Dead Don’t Hurt peca igualmente pela excessiva introspeção, afastando qualquer laivo de uma progressão mais tangível. Além disso, a crítica social, embora pertinente, surge por vezes de forma demasiado explícita e forçada. O filme ainda sofre de uma previsibilidade no arco narrativo, com o uso excessivo de metáforas e símbolos que, em vez de enriquecerem a trama, tornam-na desnecessariamente hermética.
Apesar das suas evidentes falhas, The Dead Don’t Hurt é uma obra corajosa e pessoal – Mortensen entrega algo que, embora imperfeito, merece ser celebrado pela sua ousadia e sensibilidade. O filme não reinventa radicalmente o género, mas utiliza-o como uma lente para explorar temas contemporâneos e universais. Se calhar o grande sucesso de The Dead Don’t Hurt incide no facto de desafiar o espectador a olhar para além da poeira e das armas e encontrar beleza e resistência onde menos esperava.