The Dead Don’t Hurt (2024)

de Matilde Garrido

Na sua segunda incursão como realizador, com The Dead Don’t Hurt (Até ao Fim do Mundo), Viggo Mortensen desmantela as convenções do western ao centrar a narrativa numa mulher, cuja força reside na sua resiliência emocional e determinação, em vez de recorrer a feitos heróicos ou privilégios masculinos. Para além de realizar, Mortensen assina o argumento, a produção, a banda sonora e ainda protagoniza parte da obra, evidenciando um domínio absoluto sobre a narrativa e uma abordagem criativa multifacetada. Filmado nas imponentes paisagens de Durango, no México – um cenário mítico que acolheu clássicos como The Good, The Bad and The Ugly (O Bom, o Mau e o Vilão, 1966) e The Wild Bunch (A Quadrilha Selvagem, 1969) -, o filme desenrola-se entre os desfiladeiros erodidos do Nevada do século XIX, oferecendo um retrato íntimo e inovador de amor e sobrevivência.

The Dead Don’t Hurt é uma história de amor atípica, centrada em Vivienne Le Coudy (Vicky Krieps), uma florista franco-canadiana, e Holger Olsen (Viggo Mortensen), um carpinteiro dinamarquês. O encontro romântico dos dois em São Francisco leva-os a procurar uma nova vida num recanto remoto do Nevada, longe dos tumultos da cidade. No entanto, a Guerra Civil norte-americana irrompe como uma força implacável e ameaça a felicidade do casal, quando Holger sente a obrigação moral de se alistar, deixando Vivienne para enfrentar não só a solidão, mas também as ameaças de um homem poderoso. Ao entrelaçar a brutalidade do western com uma abordagem emocionalmente complexa, o filme coloca em evidência a luta de Vivienne para manter a sua autonomia e dignidade, enquanto navega num mundo dominado pela violência masculina.

The Dead Don’t Hurt não procura reinventar o western, mas utiliza os seus elementos de forma subversiva. Há cavaleiros, saloons e tiroteios, mas tudo isto serve como pano de fundo para questões mais profundas. Mortensen, por sua vez, insere com outros elementos mais contemporâneos no género, associados ao protagonismo feminino e ao código moral (e até mesmo a aparição da icónica espada Andúril, um discreto aceno à sua carreira em The Lord of the Rings [2001-2003]). A violência, quando presente, é crua e desprovida do glamour habitual do western, deslocando o foco dos confrontos épicos para as batalhas internas e silenciosas das personagens.

Enquanto Mortensen interpreta Holger, um homem enigmático e de poucas palavras, Krieps rouba a cena com a sua Vivienne. Conhecida pelas suas performances fortes em filmes como Phantom Thread (Linha Fantasma, 2017) e Corsage (Espírito Inquieto, 2022), Krieps dá vida a uma mulher que não se conforma com as limitações impostas pela sociedade da época – é uma figura de resistência, na qual a força e a vulnerabilidade coexistem, enfrentando o machismo e a hostilidade do Nevada. Mortensen faz uma crítica ao mito do Oeste Americano, ao destacar a jornada de Vivienne não apenas como mulher, mas também como imigrante, lutando por um lugar numa terra que, embora prometa liberdade, oferece acima de tudo desafios.

Ao alternar entre o passado e o presente, Mortensen opta por uma abordagem narrativa em que as emoções e as memórias das personagens têm primazia sobre a ação, contudo, o seu ritmo deliberadamente lento e a sua estrutura não linear, acabam por ser os elementos mais polarizantes deste filme. Ainda que os saltos temporais contribuam para um peso renovado do desfecho, por vezes enfraquecem a tensão dramática e diluem o impacto de cenas-chave.

The Dead Don’t Hurt peca igualmente pela excessiva introspeção, afastando qualquer laivo de uma progressão mais tangível. Além disso, a crítica social, embora pertinente, surge por vezes de forma demasiado explícita e forçada. O filme ainda sofre de uma previsibilidade no arco narrativo, com o uso excessivo de metáforas e símbolos que, em vez de enriquecerem a trama, tornam-na desnecessariamente hermética.

Apesar das suas evidentes falhas, The Dead Don’t Hurt é uma obra corajosa e pessoal – Mortensen entrega algo que, embora imperfeito, merece ser celebrado pela sua ousadia e sensibilidade. O filme não reinventa radicalmente o género, mas utiliza-o como uma lente para explorar temas contemporâneos e universais. Se calhar o grande sucesso de The Dead Don’t Hurt incide no facto de desafiar o espectador a olhar para além da poeira e das armas e encontrar beleza e resistência onde menos esperava.

3/5
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