The Crow (2024)

de Pedro Ginja

Era inevitável Hollywood revisitar The Crow (1994), tal é a ânsia de repetição de fórmulas de sucesso. No entanto, foram precisos 30 anos para que fosse seguro arriscar numa reinvenção da história e, mesmo hoje, existem muitos que duvidam da necessidade da existência deste remake de Rupert Sanders, com o próprio Alex Proyas (realizador do filme de 94′) a afirmar ser uma falta de respeito pois é mais do que um filme – é o legado de um homem, Brandon Lee. O original é um filme de culto adaptado de um comic book de James O’Barr em que o protagonista é um “anjo” vingador que ressuscita para encontrar e matar os assassinos da sua mulher. A clássica história de vingança de um ente querido, presente na história do cinema desde sempre, mas que aqui é revestida de uma sensibilidade gótica, um estilo visual apurado, uma banda sonora temperamental e sinistra, e Brandon Lee a encarnar Eric Draven em todo o seu esplendor, tanto emocionalmente como fisicamente nas inúmeras sequências de acção. Uma estrela em ascensão que tragicamente morreu durante as filmagens e que nunca pode atingir o estrelato que parecia já ser um dado adquirido.

Rupert Sanders, em 2020, acabou por ser o escolhido para levar o novo projecto deste universo avante, após uma interminável sucessão de nomes associados a esta sequela desde 2008. Esta versão, segundo James O’Barr, segue uma estrutura bem diferente que o comic book apresenta, com ênfase bem maior na história de amor, que domina o primeiro acto do filme. Aliás, ao Eric Draven de Bill Skarsgård é adicionada uma backstory da sua normalidade possível num reformatório juvenil e que serve de cenário para que Draven conheça a sua Shelly (FKA Twigs). Tudo muito luminoso, inocente e a perfeita antítese do que é o comic book e o filme original.

É um início a afirmar o caminho totalmente diferente que segue mas a meio gás, aborrecido e em que nem FKA twigs nem Skarsgård saem favorecidos nas suas interpretações. Muito em parte pelo argumento que quer apontar novas direcções e ideias, mas não tem o discernimento de as levar a bom porto. Dominam os diálogos embaraçosos mas felizmente a química existe, o que atenua, em parte, e evita que o romance caia no ridículo. Ainda há tempo para alguns quantos erros como a cenografia do “limbo” para onde Eric vai antes de voltar ao mundo dos vivos. De um decadente, opressivo, gótico e escuro inferno na Terra no filme original, passamos para uma visão apocalíptica, luminosa e delapidada de uma cidade moderna, a lembrar a Nova Iorque de I Am Legend (2007), vá-se lá saber porquê. Chegando ao ponto de Kronos (Sami Bouajila), o guardião deste mundo, sussurrar a frase “This doesn’t look special but…” – vou parar-te aí porque tens toda a razão.

A partir daqui a transformação começa lentamente a acontecer, com o uso de água como portal para o inferno, onde a câmara lenta e efeitos visuais usados com inteligência a tornam algo de especial, o design de som distinto do mundo “superficial”, o que cria um sentimento de desconforto palpável e uma transformação, não apenas visual mas vinda de dentro, que se sente na interpretação de Skarsgård.

Após um acto intermédio em que Eric Draven parece estar a conhecer os seus poderes como anjo vingativo imortal, e joga pelo seguro, entramos, após um evento traumático, numa hiper-estilização de violência que culmina numa coreografia com claras inspirações em John Wick, laivos de comédia negra e “rios” de sangue que parecem transbordar pela tela de cinema para o espectador – aviso para os mais sensíveis a fecharem os olhos por alguns minutos. Não é nada de extraordinário mas pelo menos mostra um pulso a bater por debaixo de um início pleno de desilusão.

Também o Eric Draven de Bill Skarsgård parece renascer de um limbo de indecisão e algumas más opções e nos presentear com uma nova encarnação, inferior a Brandon Lee é certo, mas com o suficiente para convencer o espectador a acreditar na sua missão. Quem supera, e em muito, os presentes no original são os vilões, e aqui reina supremo Danny Huston, como Vincent Roeg. Há uma qualidade inata em Huston de usar o seu rosto expressivo para expor as suas personagens e aqui fá-lo sem levantar a voz, sem histrionismos e quase sem levantar um dedo. Exsuda uma aura de ameaça constante e um sentimento de desconforto no espectador difícil de resolver e que, com um uso engenhoso de design sonoro na sua voz, o intensifica a níveis difíceis de suportar. Dizer que é o melhor que o filme nos oferece não é exagero. Notas finais para Laura Birn, como Marion, cujo arco de medo crescente, em contraste com o sempre frio Danny Huston, impressiona e Karel Dobrý, como Roman, com poucas cenas mas do qual não conseguimos desviar o olhar, a relembrar Rutger Hauer, no seu auge, circa Blade Runner (1982).

The Crow ressuscita, 30 anos depois, e a pergunta que se impõe é “isto era mesmo necessário”?. A resposta é não, mas existem momentos em que nossa irritação, para com esta ânsia de Hollywood de esgravatar sucessos passados em busca de lucro fácil, é esquecida quando o argumento tem a coragem de se desviar do caminho seguro inicial para terrenos pantanosos, perto do final, onde o risco é a palavra de ordem. Isto também é sinónimo da transformação, em tempo real no filme, de Eric Draven por parte de Bill Skarsgård que ainda vai a tempo de o salvar do desastre completo, mas não evita ser suplantado por um magnânimo Danny Huston como o vilão, que poderia ter tornado o original numa obra-prima.

3/5
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