The Crow (1994)

de João Iria

“Can’t rain all the time…”

The Crow é uma história reinada por tragédia. Na noite do Diabo, dia 30 de Outubro, numa Detroit devastada por crime, um jovem casal – Shelly Webster (Sofia Shinas) e Eric Draven (Brandon Lee) – é assassinado por um gangue violento que desvanece pela noite, com os seus pecados impunes. Um ano depois, Eric renasce com uma missão de vingança, assumindo a identidade sobrenatural de um Corvo, à procura dos homens que provocaram a morte da sua amada. James O’Barr, o autor do comic book, mencionou que esta narrativa originou como uma forma de lidar com a inesperada morte da sua namorada, atropelada por um condutor alcoolizado. Uma página branca para inserir as suas vastas complexas emoções, dominadas por tristeza e raiva. No dia 31 de Março, em 1993, durante as filmagens da sua adaptação para o cinema, Brandon Lee, o actor principal, faleceu, sendo mortalmente ferido por uma arma de adereço. A produção desta longa-metragem amaldiçoada com acidentes e problemas derivados de um orçamento comedido, enfrentou o seu maior desgosto nesse dia, encerrando temporariamente as suas gravações. O’Barr confessou sentir-se arrependido de sequer escrever esta narrativa, referindo que a morte de Lee foi uma recordação da morte responsável pela sua obra. Como um fantasma que alastra o seu terror além da ficção, afectando a realidade e assombrando as páginas de um autor e um inocente actor numa película, The Crow é uma história reinada por tragédia.

O clássico de culto gótico dominou a sétima arte na sua estreia através do olho cinemático do realizador Alex Proyas cujo look estrondoso, estilo goth noir com cores abatidas, uma escuridão intensa e sombras vivas, apodera-se completamente dos frames, impactando profundamente o cinema da década de ’90. A direção de fotografia de Dariusz Wolski acompanhada pelo extraordinário design de produção de Alex McDowell, criam uma imagem suja e asquerosa que cinge os cenários desta cidade com poluição, nevoeiro, sangue e chamas, reflectindo um ambiente sempre à beira do colapso moral e físico, e estabelecendo, assim, um constante mood taciturno, sombrio e violento, onde mesmo as restantes personagens sobreviventes permanecem vítimas deste mundo. Existe uma forte influência visual derivada pelos videoclips destes anos, sublinhados por uma estética punk e grunge e pelos cineastas alternativos desta época como David Fincher e Mark Romanek – curiosamente o sucesso deste filme iria inspirar diversos criadores no ramo musical –, que continua a salientar esta obra audiovisual na nossa actualidade. Ainda assim, naturalmente, o motivo principal pela sua prosperidade inicial está na tragédia que inevitavelmente se infiltrou na própria longa-metragem, concebendo acidentalmente uma estranha aura meta na própria história. Afinal, The Crow é um conto sobre um homem assassinado que ressuscita por amor. Para o público, assistir Brandon Lee nos cinemas era o equivalente de uma ressuscitação. Uma recordação do talento perdido e uma despedida melancólica. É uma sensação peculiar que podemos declarar como amor perante o actor.

A simplicidade do seu argumento, com um foco primordial nos actos de vingança da sua personagem, acudida pelo sargento Daryl Albrecht, interpretado pelo charmoso Ernie Hudson, e pela rebelde Sarah Mohr (Rochelle Davis), que processa as suas saudades desta figura paternal, é elevada principalmente pela alma de Brandon Lee; a sua presença sentida em todos os instantes desta longa-metragem, até nas sequências sem o protagonista. Os seus momentos silly, como uma insistência bizarra em distanciar o seu protagonista de cigarros, somente enaltecem os seus pormenores, tornando até os mais pequenos momentos impactantes. Como Eric menciona, numa fala improvisada por Brandon Lee, “nothing is trivial.” É essencial reconhecer que os seus elementos superficiais narrativos, personagens unidimensionais e cenas notavelmente perdidas na edição surgem motivadas pela tragédia ocorrida que implicou uma necessidade em rescrever o guião, exigindo a adição de uma voice over, que se destaca ligeiramente como out of place, para atribuir uma conclusão temática à história, e um subenredo apagado com um guia espiritual que aprofundava este universo, as suas vulnerabilidades e a lógica desta metamorfose devastadora. Contudo são mudanças que também ergueram The Crow criativamente, exibido no seu uso engenhoso e impecável de CGI e iluminação, e emocionalmente: a sua transformação na edição de um filme brutalmente sangrento para um conto mais sentimental sobre a ligação entre Draven com a sua amada e o seu respectivo futuro roubado.

É genuinamente penoso escrever uma crítica e dedicar o texto maioritariamente a um infortúnio horrendo. A tragédia assombra a própria história, mistificando o seu nome, o seu corpo, o seu estatuto e a sua última actuação. Alex Proyas e a sua equipa elaboraram um incrível marco cinemático audiovisual que impactou verdadeiramente a sétima arte, mas Lee é a sua estrela; o seu pentagrama. É o seu icónico rosto pálido, lábios negros e o seu potente olhar que permanece connosco, no fim dos créditos. Quando as sombras eclipsam a esperança, é a sua voz que ilumina o caminho. Precisamente por este aspecto é que nenhuma sequela, remake ou prequela vai conseguir recriar este feito. The Crow é uma obra moldada pelo seu tempo que consequentemente esculpiu a sua era; uma obra afectada por uma tragédia que ansiamos nunca ser repetida.

Independentemente da qualidade de futuros projectos, The Crow é Brandon Lee. Sempre será Brandon Lee.

3.5/5
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