Consciência de um morto no corpo de uma IA
Em tempo de sequelas, remakes e reboots, com Hollywood num recorde de falta de originalidade, é bom ver um blockbuster comercial (principalmente de ficção cientifica) que é totalmente fresco, novo, criativo e singular. Deixa-nos com um sentimento de que é possível haver ideias novas com bom orçamento para poder entreter bem e melhor, e essa é a maior força que este filme tem.
The Creator apresenta-nos um futuro onde a Inteligência Artificial faz parte da vida humana e vive entre nós, mas após ser acusada de lançar um ataque nuclear em Los Angeles, é alvo de uma guerra sem precedentes por parte dos humanos, que visam a extinção da sua própria criação. No meio disto, um soldado aposentado, Joshua Taylor (John David Washington), encontra a arma secreta na forma de uma criança androide.
Logo de partida este é um filme que tecnicamente mostra-se competente e exímio. A banda sonora é sólida e grandiosa, sem nunca perder atenção dos momentos menores que levam o filme em frente. Mas a verdadeira estrela é a apresentação visual. A fotografia é muito bonita, com enquadramentos interessantes e uma identidade própria, mas sobretudo com cor, iluminação e textura de alto nível. Juntamente com estes fatores, e mesmo até elevando-os, o uso de CGI é profissional, ponderado e justifica a sua existência. Numa era onde estes efeitos computorizados estão sob fogo, e parecem regredir em qualidade, mesmo após anos de evolução e com toneladas de dinheiro investido, ver um filme, que necessita dos mesmos para sobreviver, conseguir viver e prosperar graças a isso, é refrescante. Todos os cenários, personagens e ações que fazem deste mundo uma pintura tão verosímil que chega a assustar, são fruto de um trabalho técnico extraordinário. Os designs são bem inspirados e até únicos, sendo levados a bom porto pelo nível de detalhe estonteante, principalmente nos androides que misturam atores reais com elementos robóticos. Sem dúvida que serão um marco daqui para a frente.
Por outro lado, o filme peca na escrita em muitos sentidos. Sim, a ideia é original, apesar de ser longe de revolucionária, e apresenta muito potencial para explorar temas humanos e sociais, bem como conseguir ter intriga e suspense para segurar o espectador na narrativa. O problema é que tenta ser muita coisa ao mesmo tempo, acabando por não aprofundar nada. Tenta ser um filme de ação estiloso, misturado com ambiente filosófico e provocador no contexto já quase pouco hipotético da ficção científica, tudo colmatado com um drama clássico de empatia pelo personagem. No fim de contas não atinge nenhum deles a um ponto de excelência máxima, chegando apenas ao patamar de minimamente competente e interessante.
Infelizmente a maior ofensa do argumento é mesmo as falhas lógicas e os alicerces básicos e cliché onde se apoia. Há algum melodrama desnecessário, que recorre a muitos elementos demasiado batidos no cinema comercial de forma preguiçosa, desde a resolução de pontos de narrativa até mecanismos para tentar conectar personagens connosco. Chega mesmo a tratar o espectador como um bebé, não confiando que o mesmo vá perceber o que se passa nem confiando em si próprio para acreditar que o que está na tela é suficiente para isso, acabando, assim, por sentir a necessidade de explicar ou expor demasiada coisa através das palavras das personagens. Além disto, existe ainda uma boa quantidade de lógica atirada ao rio com vários momentos “deus ex machina”, onde algo ou alguém acontece de forma aleatória e acabam por solucionar um obstáculo presente, sendo esses momentos em demasiada quantidade e impacto.
Já o protagonista é um que não ultrapassa os conformes do herói clássico e banal, que é atormentado pelo seu passado, cria uma ligação com uma criança robótica que aos seus olhos é o inimigo e ainda questiona se está a fazer o bem ou o mal (sendo uma pergunta com resposta fácil) com John David Washington a conseguir injetar alguma dose de carisma e energia à personagem, se bem que de forma não muito consistente. O que o salva é a ligação e química que tem com a sua mulher e com a própria criança, que se mostram convincentes e aptas para carregar o núcleo emocional do filme. No entanto, o pico da representação vai para a jovem Madeleine Yuna Voyles que tão bem representa a pequena androide. Madeleine é capaz de transmitir toda a tristeza, alegria, medo, confusão, angústia e tudo o que a personagem pede, sem nunca falhar as doses corretas de cada emoção. Além do mais, fá-lo ao mesmo tempo que não deixa escapar a verdade de ser um androide.
Obviamente que falar sobre IA numa altura destas é uma decisão que tem tanto de pertinente como de arriscada. Sim, é verdade que estamos numa fase de expansão enorme dessa tecnologia, mas essa mesma expansão trouxe questões fracturantes, em específico à própria indústria do cinema de Hollywood que à data da escrita deste texto está parada em protestos que em grande parte envolvem a IA. O ponto crítico desta questão no filme é que decide humanizar a IA e torná-la praticamente igual aos humanos. É profetizado por vários humanos defensores da IA de que a mesma os trata melhor do que algumas pessoas, e grande parte do world building vem de mostrar os robots e androides a terem crenças, fés, emoções e pensamentos precisamente iguais às gentes. É já certo e sabido que esta é uma forma de fazer uma retrospectiva a nós próprios, mas humanizar desta forma uma tecnologia que está a ameaçar a própria questão humana na vida real, é uma jogada forte e ousada que merece aplauso e um sussurro de cuidado. Pelo menos tiveram a decência de estabelecer apenas os americanos como os humanos desprezíveis e culpados, deixando outras culturas um pouco em paz.
Ao ver tudo com “olhos de ver”, na linha de chegada está um filme minimamente interessante, que consegue justificar a sua existência bem como dar um bom uso ao seu orçamento. Consegue pelo menos entreter e manter o espectador a acompanhar a história, tentando pelo caminho ser pertinente e olhar para horizontes aos quais não vai chegar. Vale a pena ver em sala de cinema pelo seu espetáculo visual e para apoiar novas ideias num mercado tão reciclado. Nem que seja para ver aquela que, provavelmente, é a melhor cena do filme e que apenas revelo que envolve um cão. Quando virem, entenderão.