The Color Purple (2023)

de Francisca Tinoco

The Color Purple tem o toque de Midas. O romance de Alice Walker venceu prémio Pulitzer em 1983. O filme de 1985 de Steven Spielberg tornou-se um clássico e foi nomeado a 11 Oscars. E a revival do musical entre 2015 e 2017, ganhou Grammys e Tonys. A nova versão, realizada pelo cineasta ganês Blitz Bazawule, não é um remake do filme de Steven Spielberg, e não é uma adaptação direta do romance de Walker. É, sim, uma adaptação do musical da Broadway, adotando deste parte da música, do elenco e da encenação. Um pouco como o que aconteceu com o filme musical que também estreou em 2024 em Portugal, Mean Girls. Apesar de não ser, nem de longe, nem de perto, um mau filme, esta re-imaginação da familiar história de Celie rompe com a tradição de criar ouro.

Conhecemos Celie (Phylicia Pearl Mpasi/Fantasia Barrino) enquanto adolescente em 1909. É uma rapariga Afroamericana que vive no estado da Georgia com a sua irmã Nettie (Halle Bailey/Ciara) e o seu pai Alfonso (Deon Cole). As duas são inseparáveis, protegendo-se mutuamente, tanto quanto possível, dos abusos e violações do pai, que acabam por engravidar a protagonista por duas vezes, oferecendo os dois filhos para adoção. Este cenário medonho é apenas o início de uma vida de sofrimento, negligência e violência para Celie que acompanhamos, recorrendo a pequenos saltos no tempo, ao longo de todo o filme.

Com The Color Purple, Bazawule e os produtores Oprah Winfrey, Steven Spielberg, Scott Sanders e Quincy Jones, pretendiam trazer esta épica viagem de resiliência de espírito a uma nova audiência. Uma intenção nobre que, saindo no ano em que saiu, acabou por se tornar na última vítima do cinema de estúdio da atual década que parece uniformizar todas as suas produções num molde higienizado e desinteressante. As histórias são simplificadas e limpas, tanto do prisma visual como temático, para apelar, de forma condescendente, a uma audiência supostamente demasiado sensível, facilmente aborrecível, e não muito inteligente. Se as pessoas que ainda populam as salas de cinema realmente assim se podem caracterizar, está para ser provado.

O realizador casou bem com o projeto, uma vez apaixonado pela cultura negra e entendido na linguagem musical graças à sua colaboração prévia com Beyoncé no filme de 2020, Black is King, e ao seu próprio background de rapper, produtor e letrista. Diz Oprah Winfrey, que integrou o elenco do filme de Spielberg e produziu também a peça de teatro musical, que Bazawule foi o homem eleito para liderar este ambicioso projeto graças a um storyboard baseado no realismo mágico, provavelmente reminiscente da sua longa de estreia de 2018, The Burial of Kojo.

O género musical é, por si, talvez o epítome do realismo mágico no cinema. Dessa forma, estilisticamente, Bazawule nunca entra por caminhos que não sejam já esperados de um filme 70% composto por sequências musicais, das quais poucas realmente fazem parte do mundo real da história. Claro que num musical muitas das músicas são experiências subjetivas que encaixam na etiqueta das dream sequences, não fazendo qualquer sentido no decorrer natural de uma narrativa. São extras que nos oferecem um ponto de vista privilegiado para as emoções e pensamentos das personagens, através da canção. Bazawule encena as partes musicais do seu filme de forma exímia, com movimentos e planos que encantam. Ainda assim, a sua realização é muito mais forte e segura nos primeiros dois atos, pautada por batidas constantes que unem os diferentes temas aos momentos narrativos simples e também entre si. Depois, aos poucos, perde alguma dessa identidade, para entregar um último ato mais insosso e genérico.

Não ajuda também o facto da música, emprestada do musical, ser medíocre e com poucas canções memoráveis. Não se compara aos musicais mais celebrados pela história e pela crítica – não por demérito do elenco, especialmente Fantasia Barrino, Danielle Brooks e Halle Bailey que estão, sem dúvida, no seu elemento. Taraji P. Henson, que interpreta a vivaz cantora de blues Shug Avery, não é uma performer musical nata, e nota-se quando tem que cantar e dançar, mas as suas garras enquanto atriz dramática saem quando têm que sair, relembrando os espectadores que é uma das grandes estrelas do cinema da atualidade.

Fora do elemento musical, The Color Purple é inequivocamente uma grande narrativa que não deixa ninguém indiferente. Emotivas, completas, e essenciais, as histórias de Celie, Nettie, Sofia, Shug e Mary Agnes trazem-nos lados diferentes de uma experiência feminina que, infelizmente, tanto em 1985 como em 2023 ainda é atual. A irmandade e companheirismo entre estas mulheres face à violência machista que as rodeia é empoderadora e, inclusive, usada no filme como exemplo da existência de Deus.

Nessa última parte, só acredita quem quer, e não há dúvida que esta versão de The Color Purple tem um fator religioso que chega a roçar o moralizador e doutrinário, mas por debaixo de tudo isso há uma mensagem universal que vale sempre a pena recordar – o mundo tem tanto de feio como de belo e a definição do que é que constituiu qualquer uma dessas categorias, é inteiramente da nossa responsabilidade. É nessa escolha que reside todo o nosso poder.

3.5/5
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