Qual é a nossa responsabilidade moral nos atos que cometemos? Seremos os principais autores destes ou depende das ações de quem nos rodeia? Pode ser considerado culpabilidade partilhada se e o destino for decidido por quem nos lidera, em vez de nós próprios. Será que a escolha existe realmente ou somos meros peões num mundo dominado por poucos? Estas questões são encontradas na nova longa-metragem de Paul Schrader, que continua na sua missão de apuramento da verdade, nesta história.
The Card Counter acompanha William Tell (Oscar Isaac) no seu regresso à vida no exterior após a passagem, durante 8 anos, numa prisão militar. Durante este período como recluso, aprende a “contar cartas” e torna a sua missão de vida, aplicar o que aprendeu de uma maneira diferente, jogando de forma modesta e humilde, nunca ficando hospedado no casino e evitando atrair atenções para a sua pessoa e o seu conhecimento. O passado é para ficar atrás das costas, mas este tem outros planos, quando o seu comandante militar, Major Gordo (Williem Dafoe), e o filho de um ex-colega, Cirk Baufort (Tye Sheridan), voltam a entrar na sua vida. Será com eles que poderá redimir os pecados de um passado que quer esquecer?
Schrader continua na sua busca do que define um homem, o seu compasso moral e as suas dúvidas, inquietações e incertezas. Para o exterior, o mundo quer um homem confiante, que sabe o que quer e que o expressa, todavia, no interior de cada um existem interrogações. Exteriorizar o bem e interiorizar o mal é sempre a única solução e neste argumento, como habitual para Schrader o interesse está em William (Isaac), a sua mentalidade e identidade. Um individuo que projeta calma, controlo e certeza para os outros, enquanto os seus pensamentos, que surgem através de voz-off (escritos num diário), revelam um homem focado no seu objetivo, sozinho, num mundo de constante borbulhar, contendo a sua raiva ao transformar o ambiente onde escreve, sem estímulos. As apostas controladas reforçam a mesma ideia, uma necessidade de estabilidade na sua vida.
Com a chegada de Cirk – o catalisador perfeito para Oscar Isaac brilhar -, a possibilidade de redenção de uma história aterradora torna-se credível. Schrader transporta-nos para o passado, de forma perturbadora, com uma sensação de estranheza e de estarmos a possuir o corpo deste protagonista, através da distorção sonora, da cor e da perspetiva que reforçam o horror de uma realidade já esquecida, substituída nas notícias do dia-a-dia com o novo escândalo da moda, mas nunca esquecida na mente de quem o viveu, como William Tell.
Este é um filme que vive de momentos e são estes que movem a narrativa, criando um novo caminho que afasta a história da previsibilidade inicial com um ponto de viragem em La Linda (Tiffany Haddish, infelizmente, sem papel para interpretar), que surge para ajudar Tell a atingir a sua redenção. Esta adição causa frustração pois cria confusão temática com novas questões: será o enredo sobre os bastidores do jogo ou do que é necessário para ganhar? Estará Schrader a brincar com o espetador? Issac participa neste jogo de forma exemplar, numa constante busca de ordem e moderação com o seu olhar a revelar uma busca desesperada de absolvição fora de si. Um processo que se repete uma vez mais, no terceiro ato, quando surge um “click” na personagem, que eleva o material além do que retrata. A verdade, nua e crua está à nossa frente; a redenção não é a desejada mas a possível.
Após o brilhante First Reformed (2017), Schrader demonstra que só ele consegue filmar o mundo interior das suas personagens e a realidade que nos rodeia de forma tão crua. O final poderá desiludir ou defraudar as nossas expetativas mas não há como duvidar da sua verdade. Schrader está de volta e em grande forma.