The Bikeriders (2024)

de Pedro Ginja

A sensação de andar de mota pela primeira vez fica sempre enraizada na nossa mente. Para alguns é a primeira e única vez devido às sensações negativas impostas pela experiência quase sempre refém da falta de segurança e da eminência de um acidente estar à distância de um mero deslize nosso ou de alguém que se cruze no nosso caminho. Para outros adquire um aspecto transcendental onde os nossos sentidos são assaltados e testados a cada segundo. Inconsciente ou conscientemente os motociclistas percebem melhor o conceito de mortalidade, que o nosso tempo é finito neste planeta, e aceitam esta verdade como absoluta. Tudo isto para sentir o chão a meros centímetros de distância, os sons que nos envolvem e parecem fazer parte de nós ou o horizonte desfocado que se materializa sem nos darmos conta. Fazemos parte da realidade envolvente e não meros espectadores vendo o mundo passar.

The Bikeriders de Jeff Nichols acompanha a criação de um grupo de motociclistas chamados Vandals em Chicago, Illinois. Johnny (Tom Hardy), o seu fundador, tem uma vida aparentemente convencional mas à qual falta um escape e um espaço de descompressão do stress do dia-a-dia. Com o crescimento descontrolado do grupo as prioridades iniciais centradas na lealdade e no valor da família tidas como basilares alteram-se, fruto da introdução ao crime organizado onde a violência é o prato principal. Ao mesmo tempo Johnny procura assegurar o futuro do grupo transferindo a sua liderança para Benny (Austin Butler), o seu protegido, dividido pela lealdade ao grupo e o amor por Kathy (Jodie Comer). As apostas estão na mesa e as consequências das decisões são imprevisíveis.

Esta é uma história ficcional baseada, e adaptada, no livro de fotografias, com o mesmo nome, escrito por Danny Lyon, que retratava um grupo similar chamado Outlaws originário de McCook, Illinois. Além da realização, Jeff Nichols é também o responsável pelo argumento e a sua reverência para com o livro de Danny Lyon é mais do que evidente. Desde actores secundários que parecem clones de alguns presentes no livro (Surgem nos créditos finais as fotos originais) ou fotocopiando planos no filme de imagens pré-existentes. O principal objectivo é, no entanto, levar-nos para um período da história americana conhecido por ser o último reduto da rebeldia e do movimento free-spirit e consegue-o em certos momentos, principalmente nos mais emocionais, mas tudo parece demasiado limpo e convencional. Nada de mal com isso pois a história é apelativa e consegue humanizar as suas personagens, para além dos clichês negativos associados a gangues de motos, mas parece deslocado do que pretendia oferecer ao espectador no início.

O trio de protagonistas é um dos seus pontos mais fortes com destaque para o coração da história, a Kathy de Jodie Comer. Ao escolher a sua voz como a narradora da odisseia dos Vandals consegue revelar uma perspectiva nova, normalmente secundarizada, sem nunca menosprezar o lado masculino que compõe a vasta maioria do elenco. Impressionante mesmo, chegando a distrair do que está a ser dito, é o sotaque usado por Jodie, também ele retirado de gravações nos anos 60 de uma mulher entrevistada por Danny Lion para o seu livro, revelando o trabalho de pormenor e atenção da actriz. O lado masculino é igualmente forte com Austin Butler, como Benny, que escolhe revestir a sua personagem de carisma e intensidade nos olhares e postura mesmo quando o argumento lhe dá bem menos para dizer. A completar o trio protagonista temos Johnny, interpretado por Tom Hardy, que segue o caminho de Jodie Comer e presenteia-nos com (mais) um sotaque digno de registo, na sua longa carreira. Como sempre, Tom Hardy perde-se, no bom sentido, na sua personagem transformando-se de um homem comum para um líder temido por todos. A relação estabelecida com Benny é de profunda admiração e respeito ao que Tom Hardy ainda adiciona uma infinidade de pormenores e subtilezas, muitas vezes contraditórias, contribuindo, e de que maneira, para envolver o espectador. No entanto, e como no caso de Jodie Comer, o exagero no sotaque distraí por vezes do que é dito e acaba por ser o ponto mais negativo do filme. A estranheza revela-se maior porque muitos dos secundários nem sequer usam qualquer tipo de sotaque e os das personagens principais, apesar de fiéis à época, parecem forçados em demasia pelos protagonistas. E que desfile de secundários brilhantes desde o já habitual repetente nas obras de Jeff Nichols, Michael Shannon, passando ainda por Mike Faist (fresquinho de Challengers (2024)), Boyd Holbrook, Norman Reedus (que queríamos ver bastante mais) e o desconhecido Toby Wallace a impressionarem de sobremaneira.

Para os aficionados das duas rodas este acaba por ser o paraíso na terra com uma infinidade de motas vintage alteradas chamadas de choppers, que diferem entre si devido às modificações impostas pelos seus condutores, e que podemos apreciar em todo o seu esplendor livres de qualquer CGI. E vê-las, em conjunto, a circular estrada fora é uma visão difícil de esquecer. O trabalho de design de som também contribuí, e de que maneira, para tornar estes momentos ainda mais inesquecíveis. Ainda é importante referir a inevitável homenagem a Easy Rider (1969), obra seminal no universo das motos e da história do cinema, e que aqui surge numa referência hilariante cortesia de Norman Reedus.

The Bikeriders retrata uma época de rebeldia e de transformação na sociedade americana com uma precisão e paixão impressionantes bem evidentes no modo como o argumento de Jeff Nichols a romantiza e venera. O facto de tudo ser tão escorreito e limpo acaba por contradizer o próprio período de tempo, que se pautava pela liberdade e pela imprevisibilidade trazida pela estrada, mas não deixa de ser igualmente entusiasmante seguir a saga destes Vandals. Muito graças ao trio de protagonistas, composto por Austin Butler, Jodie Comer e Tom Hardy e dos quais não conseguimos tirar os olhos, e da complexa relação de amor/dependência que se cria entre eles. Da próxima é favor carregar menos nos sotaques e mais no acelerador pois nunca senti o cheiro a gasolina entranhado na pele como era suposto. Como disse Austin Butler numa entrevista: “It’s just a cool movie.” E isso ainda é o suficiente nos dias de hoje.

3.5/5
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