A palavra “Banshee” remonta ao irlandês ancestral e pode ser rudemente traduzida para “fada”. Também o título em português – Os Espíritos de Inisherin – remonta para uma qualquer presença na vila titular, à costa do Atlântico, presa entre escarpas implacáveis fustigadas pelas ondas e um mar de erva verde, pedra e neblina onde encontramos dois amigos: Pádraic (Colin Farrell) e Colm (Brendan Gleeson). É uma vila pequena de hábitos previsíveis. Às 14h deveríamos encontrar os dois de cerveja na mão no pub local. Mas quando Pádraic bate à porta de Colm, e apesar de o ver sentado na sua mesa a fumar, este não lhe abre a porta. Cruzam-se no pub horas mais tarde, e Colm pede-lhe calmamente para não se sentar com ele dizendo simplesmente: “já não gosto de ti”.
A confusão no olhar de Farrell nesta cena é um esgar que se multiplica infinitamente no novo filme de Martin McDonagh. Repete “mas gostavas de mim ontem?”, com uma autenticidade difícil de negar, numa suplica perante a indiferença de Gleeson que se mantém impávido durante praticamente toda a duração de The Banshees of Inisherin.
Esta frieza de Colm é como o polar oposto perante o calor honesto de Pádraic. O primeiro com sonhos de grandeza musical e imortalidade, olhando para o seu violino como a única ferramenta capaz de impedir que o seu nome termine no esquecimento; o segundo simples, questionando-se se será demasiado “simples” de cabeça, depois de ter sido acusado por Colm de não ter cabeça suficiente para ter uma conversa, mas carinhoso, amável e um amigo verdadeiro. Para Colm, Pádraic é um obstáculo à sua imortalidade; para Pádraic, Colm é o seu melhor amigo.
Há imensa beleza em The Banshees of Inisherin, da mesma forma que há tragédias inevitáveis que pairam à volta do par, mas a maior delas todas é a que Martin McDonagh deixa, principalmente depois de tantas vezes ter sido falsamente acusado de romantizar violência. É maravilhoso ver um realizador que quando confrontando com a glória e o sonho do artista, incorporados na interpretação fria e calculada de Gleeson, vê em Pádraic e na afabilidade e solidão no seu semblante, algo que é absolutamente inestimável. Que talvez a ilusão orgulhosa da imortalidade, alimentada pelo medo do tempo que não pára, não seja um preço justo a pagar em troca da simplicidade da simpatia e da amizade. Já vimos tantos filmes a glorificar a ideia do artista torturado que se vê obrigado a quebrar as suas ligações humanas no caminho para a sua arte. The Banshees of Inisherin, que é uma expressão artística extraordinária, defende os bondosos, os simpáticos e os de bom coração, que num mundo de intelectuais, um mundo racional e frio que ruge através das explosões que se ouvem a alguns quilómetros da ilha onde vivem Colm e Pádraic, resultantes de uma Guerra Civil Irlandesa que nenhum dos habitantes parece reconhecer, o abraço, o amor e a camaradagem ainda valem mais do que a 9ª Sinfonia de Mozart. O tempo pode esquecê-los, mas não quem com eles viveu.
O filme de McDonagh é sobre um mundo em transição, uma máquina de triturar a nossa ligação uns com os outros e ao sítio onde estamos. Colm fala dos espíritos titulares como meros observadores, que se divertem a vê-los destruir-se uns aos outros, e a banda sonora etérea de Carter Burwell, que dá uma vida pacata e encantada às paisagens da Irlanda, é uma presença espiritual que nos faz mergulhar num lugar que já não existe, um lugar de fadas e magia que está a ser tomada pela apatia do novo mundo, onde a bondade de trato não habita. Kerry Condon, aqui como a irmã intelectual, mas gentil de Pádraic, e Barry Keoghan, o “idiota” da vila que Pádraic teme ser mas onde encontra a alma mais bonita daqueles que o rodeiam, são presenças de amabilidade incompreendida em Inisherin, os únicos capazes de ver nos olhos plenos de desespero de Farrell a simpatia e a humanidade que parecem ser as únicas responsáveis por toda a solidão que o abate.
Enquanto cruza as salas belissimamente montadas de Mark Tildesley iluminadas com a única luz natural capaz de dar tanta vida a um conto tão cheio de ardor, através da câmara de Ben Davis, The Banshees of Inisherin é um filme que não excluí o humor habitual de McDonagh presente nas conversas mais simples e inexpressivas, e mantém a sua estranha celebração do espírito humano. No entanto, apesar de menos cautelosamente otimista do que em Three Billboards Outside Ebbing Missouri (2017), é um filme que abraça o carinho, a simpatia e a amizade, que mesmo esmagadas por uma existência cada vez mais desligada, não deixam de marcar a existência daqueles que por ela são tocados. No meio de uma tragédia McDonagh eternizou o ato de ser amável e se Colm nos disse que a simpatia desaparece da História, o realizador irlandês claramente provou o contrário.
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