“Rule number 3: no matter what happens, you claim victory and never admit defeat.”
Este poderia ser o lema de vida de Donald Trump. Ou pelo menos um deles segundo The Apprentice, o novo filme de Ali Abbasi. De uma história sobre uma investigação ficcional criminal no feminino sobre um serial killer no seu nativo Irão em Holy Spider (2022), no seu anterior filme, Ali Abassi continua o seu percurso numa espécie de biografia sobre um dos homens mais polarizadores do mundo actual, Donald John Trump. Aparentemente díspares nos temas abordados, mas nos quais se vê mais semelhanças do que se pensa. Se voltarmos a 2018, e ao filme Gräns, torna-se tudo ainda mais evidente na demanda a que o realizador Abbasi parece ter dedicado a sua arte cinematográfica – o mito do monstro moderno.
The Apprentice mostra-nos o início do mito Donald Trump (Sebastian Stan) nos anos ’80 em Nova Iorque, quando começou a sua carreira no ramo imobiliário: a sua história familiar, amorosa e a relação próxima com Roy Cohn (Jeremy Strong), o infame advogado, responsável pela ascensão meteórica na alta-sociedade de Nova Iorque e pela criação do “monstro” que conhecemos hoje.
Pela constante repetição da palavra monstro penso ser claro afirmar que não sou o maior fã de Donald Trump. As constantes mentiras, a desinformação, a estupidificação da sociedade e o espalhar do ódio pela diferença poderiam ser algumas das razões apresentadas para não gostar do homem, mas é a sua habilidade de mover massas e de, no futuro, poder ser ele a liderar um dos países mais influentes do mundo que nos assusta verdadeiramente. Para além disso existe também um estranho fascínio pela sua persona que contamina ambos os lados da equação, dos a favor e dos contra. Seria fácil o argumento cair na armadilha da caricatura Trump, e este fá-lo em certa medida, pois os trejeitos faciais e o discurso repleto de exagero da sua pessoa são uma realidade impossível de evitar, mas consegue, ao mesmo tempo, revelar Trump antes de ser Trump, perdoem-me a redundância.
Existe subtileza nesta escolha temporal dos anos ’80, longe da (in)fama actual e do reconhecimento instantâneo. Todos o conhecemos mas ninguém o conhece verdadeiramente tal a teia de mentiras que criou e que Gabriel Sherman desconstrói enquanto eleva o mito e mostra o homem em processo de desintegração total. Há uma relação directa entre o poder que obtém e a humanidade que se parece esvair, deixando o espectador numa posição moral dúbia. Por um lado um exacerbar das suas qualidades negativas mas também o lado humano, a espaços, na culpa que sente na perda do irmão. Há uma tristeza inata e uma realização trágica de alguém profundamente sozinho e o argumento não tem medo de tocar nesse lado mais humano, aquele que ninguém quer saber.
Sebastian Stan, no papel de Donald Trump, tem uma tarefa inglória pois seria sempre impossível não cair na caricatura. Apesar desta afirmação, há também subtileza e decisões inteligentes no modo como o mostra na intimidade com cenas que variam entre o grotesco a roçar o desumano e o sentimental com o medo e o sentimento de impostor a dominá-lo. E sentimos pena nesses breves momentos e vontade de “abraçar” a versão deste homem no filme, que grita por ajuda. É, por esse carregar em tantos “botões” da personalidade de Donald Trump, que Sebastian Stan nos mostra o seu valor.
Existe, no entanto, um “elefante nesta sala” de Ali Abbasi e ele chama-se Jeremy Strong, com mais um grande papel ao interpretar este Roy Cohn, o homem responsável por quem Donald Trump é hoje. Um advogado litigioso com tremenda influência nos corredores do poder e uma das figuras mais odiadas dos caóticos anos ’80. Jeremy Strong é igual a si próprio e rouba cenas a todos com quem se cruza. Os seus olhos vazios, do qual se vê o abismo da sua total falta de moral, mostram alguém incapaz de sentir. O preconceito e o medo de revelar o seu verdadeiro eu interior, retiram-lhe a empatia. Uma maldição na vida pessoal mas que lhe permite navegar os corredores do poder e da lei sem remorsos. Sem revelar muito que possa estragar as surpresas que o filme revela a quem não conhece Roy Cohn, Jeremy Strong é exímio a mostrar como a mentira corrói alguém ao ponto da negação total do indivíduo. No final é uma carapaça dos seus tempos áureos, um homem frágil mas que sempre exsuda um poder em cada olhar, em cada jeito facial. Uma masterclass na arte de conter as emoções.
Este é um espectáculo para dois grandes actores e o espaço para os restantes é muito pouco, mas é impossível não referir tanto Maria Bakalova, no papel de Ivana Trump, carregando simultaneamente a determinação e o desgosto no olhar; e Martin Donovan, como Fred Trump, por encarnar de forma impactante o duro pai de Donald Trump. Ambos fazem milagres com o pouco tempo disponível. Estejam ainda atentos a um delicioso cameo de uma personalidade do mundo da arte, minimalista mas inesquecível.
Há uma urgência na edição da história, sempre frenética, acelerada e a deleitar-se no revelar de um tempo de excessos e descoberta em que o caos domina. O uso de grão na imagem relembra as câmaras televisivas de 16 mm dos anos ’70 no início do filme, mas vai-se transformando à medida que entramos nos anos ’80 e a era do vídeo começa. Para os planos abertos, a solução encontrada vai de encontro ao estilo de Abbasi, com o uso de imagens de arquivo para dar o aspecto informal que tanto aprecia. A alma independente de Abbasi não o levou a usar película, mas sim a adaptar câmaras digitais com lentes de 16 mm para simular o look a uma fracção do custo. A estética é claramente punk, nem sempre bonita ou polida, mas preocupada em mostrar os pormenores relevantes da narrativa, bem patente nos movimentos erráticos e tremidos da câmara e o uso quase exclusivo de luz natural. Por isto tudo é preciso dar o devido crédito a Kasper Tuxen, o director de fotografia, que ainda teve o discernimento de usar a profundidade de campo menor para destacar sempre o objecto principal da acção e desfocar o fundo não trabalhado. Os loucos anos ’80 parecem estar mesmo ali, à distância de meros passos.
O que à partida surge um simples biopic de um das mais polarizantes personalidades do presente e onde a comédia inerente à personalidade de Trump parece prioridade, cedo se transforma numa tragédia americana sobre o poder corrupto da ganância. Ali Abbasi nunca compromete os seus valores e oferece-nos uma visão perturbadora da relação simbiótica entre Roy Cohn e Donald Trump, elevada magistralmente por um surpreendente Sebastian Stan e um superlativo Jeremy Strong.