The Adamant Girl (2024)

de Francisca Tinoco

Em The Adamant Girl, o realizador tâmil P.S. Vinothraj transporta a história de uma rapariga (Meena, interpretada por Anna Ben) que, apesar do casamento planeado pela sua família, se apaixona por um homem de uma casta inferior, para um plano universal em que se encerra uma crítica astuta da sociedade indiana e, mais concretamente, da sua dimensão rural. O filme venceu o Lince de Ouro para longa-metragem de ficção na passada 20.ª edição do FEST – Festival Novos Realizadores | Novo Cinema em Espinho.

Os caminhos sinuosos e bravios do sul da Índia servem de cenário e, em certa medida, como personagem participante na viagem comprida em que as famílias dos noivos embarcam para levar Meena a um guru espiritual que a irá libertar da maldição que é a sua paixão por um homem que não o seu futuro marido (Pandi, interpretado por Soori Muthuchamy).

Vinothraj parece, a todo o momento, consciente da dualidade entre o cariz ridículo desta situação e a seriedade com que todas as personagens e, muito possivelmente, uma grande parte da população daquela região, a encaram. O resultado é um argumento e um filme com um tom muito peculiar que mistura impressionantemente bem a comédia familiar e o drama social. Não é habitual que a cena mais violenta e intensa emocionalmente de um filme seja também uma das mais cómicas, e nas mãos de outro realizador, essa combinação podia falhar redondamente e acabar por ser mais ofensiva e indelicada que outra coisa, mas, em The Adamant Girl, graças ao contexto e à escrita inteligente, funciona.

O título, que pode ser traduzido, em português, como “A Rapariga Teimosa,” refere-se, claro, à protagonista que mantém, ao longo de toda a duração, uma disposição inabalável, mesmo quando a escorraçam, violentam e desrespeitam. A primeira vez que fala é para cantar uma música romântica que passa na rádio da carrinha em que viaja com a sua mãe, o seu futuro marido, e as irmãs malvadas, qual Cinderela, do mesmo. O momento de discreta resistência empurra Pandi para o limite, explodindo agressivamente contra Meena e qualquer outra pessoa que se pusesse no seu caminho. Depois desta comoção, a rapariga regressa à imobilidade e ao estoicismo. Paralelamente, há um galo acorrentado que será usado como sacrifício no ritual religioso, com quem Meena parece relacionar-se mais do que qualquer outra presença no filme.

Apesar de estar rodeada de família e de outras mulheres, há uma solidão tremenda sentida pela personagem principal. Através das figuras das irmãs de Pandi e da mãe de Meena, The Adamant Girl consegue cartografar as relações e posições de género naquela sociedade. Há uma consciência (ainda que limitada) da ingratidão dos membros masculinos da família face ao trabalho das mulheres, mas não há espaço para solidariedade para com outras mulheres. As irmãs de Pandi queixam-se do irmão, do pai, e principalmente dos maridos, mas veem Meena como uma inimiga, uma inconveniência, e nunca tomam o seu partido quando a mesma é atacada pelos homens e sujeita ao mesmo tipo de tratamentos de que as outras mulheres se queixam. Já a mãe de Meena existe enquanto representação do futuro da protagonista se ela se submeter ao destino que outros traçaram para si. Ambas se mantêm caladas, mas, apesar de momentos pontuais em que a mulher mais velha tenta fazer frente aos homens, esta é muito mais conformada que a filha. 

Igualmente colorida e ilustrativa é a trupe de personagens masculinas composta por Pandi, o seu pai, o pai de Meena, outros primos e irmãos, e o motorista, todos provenientes de diferentes castas. A própria ordem dos veículos na estrada durante esta viagem é simbólica do posicionamento social de cada personagem, mas alguns diálogos e detalhes também servem de comentário àquele rígido sistema hierárquico. Pelo meio, cerimónias religiosas constantes – com destaque para a do casamento – com as quais o grupo se cruza ou nas quais participa, completam a tapeçaria de The Adamant Girl, conferindo-lhe traços quase documentais no seu realismo total, tanto nas vivências que captura como na forma como as captura, com artifício mínimo.

Vinothraj domina a linguagem cinemática, especialmente no que toca à criação de significado através da relação de imagens. The Adamant Girl aposta muito no simbolismo e na metáfora uma vez que, tal como a sua protagonista, não é um filme de muitas palavras. As personagens discutem coisas frívolas tal como qualquer outra família, mas é nas entrelinhas, nos seus comportamentos tal como nós, os espectadores, os percepcionamos, e nos vários acontecimentos que decorrem à sua volta, assim como na forma como o realizador os filma, edita e enquadra, que se retira a maioria do “sumo” de The Adamant Girl.

Este é um filme simples, dinâmico, e elucidativo, mas, pela forma em que põe a sua protagonista entre a espada e a parede, é também um filme difícil de concluir de forma satisfatória. Seria um final trágico demasiado doloroso e, de certa forma, opressivo para com a personagem de Meena e tudo o que ela representa? Um final feliz, “à filme”, iria, por outro lado, quebrar o ambiente hiper-realista e terra a terra de The Adamant Girl? Vinothraj opta por uma terceira hipótese – uma conclusão vaga e repentina que também acaba por desfavorecer o trabalho desenvolvido ao longo do filme e interrompe o processo catártico de quem o assiste. Diz-se que um filme é tão bom quanto a sua conclusão, e os finais são dos aspetos mais difíceis de acertar nas histórias, em The Adamant Girl, P.S. Vinothraj chega muito perto do sucesso, mas não consegue sair completamente vitorioso.

4/5
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