Lydia Tár. Compositora. Maestrina. Musicóloga. Filantropa. Detentora do EGOT (Emmy, Grammy, Oscar, Tony). Conduziu a Orquestra de Cleveland, Filadélfia, Chicago, Boston, Nova Iorque e, finalmente, Berlim. Aqui irá finalmente completar o ciclo de conduzir cada uma das 9 sinfonias de Mahler com a mesma orquestra. Resta uma: a quinta. Esta peça musical, segundo Tár, é uma peça sobre um amor resplandecente, um amor jovem ainda isento da mágoa que o seu compositor veria a imprimir nos seus trabalhos seguintes. E Tár é obcecada com a intenção do artista, sente a necessidade de ler cada uma das entrelinhas de cada pauta e encontrar as razões da alma que levaram a que cada instrumento e cada nota a estar no exato sítio onde está.
Tár existe, por assim dizer, mas não existe. É uma personagem fictícia. Porém, é difícil sair de Tár, o primeiro filme de Todd Field desde 2006, plenamente convencido que esta maestrina, esta tour de force que é Cate Blanchet na pele de uma das construções mais complexas de tempos recentes, na realidade, é uma total composição dramática. Field dedica tempo, paciência e minúcia, não a construir um mundo para Lydia, mas a integrá-la no mundo que conhecemos: é entrevistada por Adam Gopknik do The New Yorker, refere-se a figuras contemporâneas como o já falecido Leonard Bernstein ou Hildur Guðnadóttir (que produziu a música adicional do filme), falasse com detalhe do seu próximo livro Tár on Tár que será editado por uma conhecida editora americana. Tár não existe, mas existe.
Nos primeiros 10 minutos de Tár somos convidados a acompanhar a dita entrevista, com um preâmbulo inicial referente a todo o currículo eclético da nossa maestra, e onde esta é desafiada a falar sobre o seu trabalho e dar a sua opinião sobre a política de género no mundo da música clássica, da própria gramática da palavra maestro/maestrina até ao sucesso ou insucesso de antigas mulheres no alto do púlpito. Lydia mostra estar sempre no controlo: cada palavra é pesada e cartografada; cada interrupção para pensar é apenas um gesto dramático plenamente cronometrado; e cada interjeição é tão casual como o nascer do sol. Todos os movimentos são pensados pela maestra, e a câmara por onde a vemos tem o mesmo nível de disciplina. A fotografia de Florian Hoffmeister é fria e cinzenta, tão calculista como a mulher do outro lado, seguindo-a, invisível, deixando-nos num duplo papel: somos Tár e somos cúmplices de Tár.
A sua voz colocada é sedutora e eloquente, com uma certeza monolítica, e quando se impõe por entre discursos contemporâneos sobre os princípios morais por trás de separar a arte do seu criador, e se vê então no centro dessa mesma discussão, Field parece nunca julgar Tár. O seu discurso é cativante e convincente, o seu narcisismo é estranhamente irresistível, e quando Tár se movimenta em direção ao caminho predatório que esse discurso pode tomar, o filme mostra o lado menos polido da genialidade, transformando Lydia numa criatura muito familiar na era pós-Me Too a viver assombrada por aquelas que esmagou por baixo da sua influência quando estas deixaram de compactuar com os seus modos. O argumento de Field mantém-se inabalável e cinge-se ao que a sua figura central vê, quer ver e não consegue impedir-se de ver, deixando-nos reféns de Lydia Tár, do seu génio e da sua bestialidade, numa constante batalha pela devoção de quem está deste lado do ecrã.
É um filme em que o magnetismo que Blanchett nos impõem é insaciável, colocando tudo à sua volta a gravitar sobre si, fazendo com que cada detalhe de Tár, desde o impecável e audaz guarda-roupa até às salas frias e estéreis por onde caminha o seu passo decidido, se torne uma ferramenta nas mãos de Lydia Tár, a maior compositora viva, para nos convencer que devemos sempre confiar na arte e não no artista, tal com ela defende. E se as suas palavras musicais fazem tudo o que podem para nos enfeitiçar, o que a criação de Todd Field nos está a dizer sobre cancel culture, controlo, ciclos de violência e brilhantismo é muito mais complexo e sem respostas escritas em pedra, pedindo-nos que decifremos este estranho e sangrento puzzle que é o mundo dos poderosos e influentes, dos Deuses na Terra que tão facilmente se tornam difíceis de distinguir de monstros. Lydia Tár pode não existir, mas existem muitos como Lydia Tár. E como a audiência da maestrina, nós aplaudimos, às vezes, indecisos, se é ao artista que lançamos louvores, ou se há farsa que o construiu.
3 comentários
Filme cheio de Manipulações Perversas, para deixar algum público baralhado e confuso. E certos críticos, o tomarem como obra-prima, quando está cheio de incongruências, para um melómano informado e culto! Tudo sem olhar a meios para. endeusar uma atriz, já por si com dois óscares e diversos prémios. Presta-se à arrogância de críticos, que nem põe os pés numa sala de Concertos de musica Clássica ou erudita( o nome Concerto, apropriado, pela outra música de arena)! Filme falsamente todo construído à volta duma personagem fictícia, para a fazer publicitar…
Olá, António! Obrigado pelo feedback. Felizmente, uma das coisas maravilhosas do cinema é que permite diferentes interpretações do mesmo filme, como é o nosso caso aqui. Além disso, outra coisa bonita que o cinema faz é dar-nos ferramentas para nos colocarmos nos pés de alguém que vem de um mundo completamente diferente do nosso sem que para isso seja necessário, neste caso, um conhecimento vasto da tal “música erudita” que menciona. Tudo isto para dizer que TÁR, é um filme que se passa no meio da música clássica, mas é sobre tudo menos sobre música clássica. Isso, claro, na opinião deste arrogante crítico! Lamento que as nossas opiniões sejam tão divergentes, mas também isso é sinal que o filme abre portas a discussões interessantes e educadas 🙂 Bons filmes!
São preciso décadas de ouvir Concertos e de se enfronhar e amar a musica clássica, para se poder avaliar devidamente, o pretensiosismo manipulador do realizador de Tár, que faz o espectador. menos conhecedor, ficar confuso e baralhado, mas que certos críticos querem passar e até impor como um bom filme, arrogantemente!