RackaRacka: um duo formado por Danny e Michael Philippou, dois irmãos gémeos australianos, que criaram este canal de Youtube, em 2013, dedicado às suas ideias tresloucadas dentro do género do horror e comédia. Vídeos como Ronald McDonald a experimentar um hambúrguer do Burger King, a explosão de raiva do Monstro das Bolachas, um Pikachu Demoníaco sedento por sangue humano ou o simples ato de vender a água de banho da atriz pornográfica Riley Reid, exibem um nível de produção invejável para diversas longas-metragens. Um registo comum no meio da comunidade criativa online na Austrália, que combina uma estética homemade com visuais cinemáticos, uma edição excêntrica e a insanidade imaginativa ambiciosa dos seus criadores. Este engenho impulsiona milhares de indivíduos a atirarem-se do precipício da sétima arte, com a esperança de atingir o profundo mágico e brilhante rio, invés do rochedo mortífero no fundo. Os irmãos Philippou saltam para a sua primeira longa-metragem, Talk to Me, flutuando pelas nuvens com uma das melhores obras de terror dos últimos anos.
Mia (Sophia Wilde), uma jovem de 17 anos, procura por distrações da morte da sua mãe, distanciando-se do seu pai, Max (Marcus Johnson), e aproximando-se da sua amiga, Jade (Alexandra Jensen), e da sua família. A solução está numa mão embalsamada que permite comunicar e conjurar os mortos, utilizada nas populares festas dos seus colegas, cujos desafios são gravados e publicados na internet – típico dia na Austrália –. Esta sensação assustadoramente única propulsiona a jovem a entrar num novo mundo e a desenvolver um vicio nesta ausência mental, emocional e física, permitindo que esses espíritos permaneçam consigo e manipulem o seu sofrimento.
Existe um perigo, para criadores online, de tropeçarem na sua transição cinemática em erros comuns do género perante produções financeiramente superiores e equipas de milhares de pessoas para dirigir e guiar. Além do principal elemento de uma longa-metragem exigir uma paciência incomum em vídeos de Youtube, cuja média de duração reside em cerca de 10-15 minutos, com uma edição apropriada para um público com défice de atenção. É um processo de adaptação complicado que exige uma separação de ambientes e uma consciência dos divergentes espaços e da história a ser contada. O próprio enredo básico podia pertencer a uma playlist, no canal RackaRacka, com um título similar. Todavia, os irmãos Philippou destacam-se dos seus contemporâneos, transportando a sua singularidade ao mundo cinemático, e preservando a sua personalidade divertida e entusiasmo num ambiente negrume, desprovido de esperança e habitado por um clima de tragédia inevitável. Aliás, o seu sucesso surge precisamente devido às suas origens neste meio online, onde o duo conseguiu evoluir a sua técnica e o seu domínio narrativo durante uma década, através de conceitos bizarros e excêntricos ilimitados na sua imaginação.
Notado, principalmente, nos elementos técnicos desta produção. A direção de fotografia mantém-se contida no realismo, contrastando com a iluminação intensa e abstrata dos momentos simbólicos, criando planos visualmente elegantes, cujo foco reside sempre na viagem dramática das personagens, com uma composição fotográfica que nunca distrai do núcleo sentimental desta história; a edição compreende a importância do movimento juntamente com a do silêncio, atribuindo idêntica relevância a ambos e preservando um pacing perfeito; e o design de som, propositadamente irrealista para aproximar-se do genuíno impacto emocional, onde uma chapada no rosto sente-se como um tiro de espingarda pela audiência, elabora detalhes sonoros intensificados que evocam um eco numa alma vazia. A alma de Mia. A realização deste duo atinge o melhor do cinema de horror comercial, equilibrando o seu apelo popular com a espiritualidade artística indie.
Espalhado pelo medo e pelas distintas imagens arrepiantes, destacam-se performances fantásticas, com cada ator e atriz a distinguir-se individualmente nesta produção, prometendo um futuro grandioso nas suas carreiras. O elenco alcança a energia habitual do género com uma naturalidade única, todavia, este é o espetáculo de Sophia Wilde. A atriz conjura lágrimas, desespero e uma empatia sublime perante uma protagonista perseguida pelo sofrimento, confusão e insanidade, confinada num comportamento instável e em decisões que refletem essa vulnerabilidade desequilibrada, enquanto procura desertar a sua realidade. Quando o público exclama para o ecrã, é por preocupação.
A primeira longa-metragem dos irmãos Philippou possui uma confiança digna de cineastas experienciados. Talk to Me é destroçador, aterrorizante e um dos melhores filmes de terror dos últimos anos. Existem duas narrativas em simultâneo nesta produção. Frente às câmaras, uma obra tenebrosa acerca de uma adolescente incapaz de separar, emocionalmente, a vida da morte, presa no limbo do processo de luto que torna ambas indistinguíveis. Atrás das filmagens, um duo criativo que desde infância atira-se aos seus conceitos com a esperança de um futuro no cinema. A sua determinação fincada nos seus ideais, insistindo em produções no seu país da Austrália, rejeitando Hollywood e sendo aceites pela comunidade indie.
Parabéns! A sétima arte lets you in.