Não é tão bom quando dois géneros se cruzam e essa fusão resulta num filme interessante, valioso e intrigante? Swan Song é um exemplo disso mesmo, com um drama no coração da história, e pele de ficção científica.
Num futuro não muito distante, Cameron (Mahershala Ali) está doente, mas a sua mulher Poppy (Naomie Harris), e filho pequeno nada sabem, e para impedir o seu sofrimento Cameron pondera clonar-se para que nada mude na dinâmica da família. No entanto o dilema da decisão consome-o, já que não se sente preparado para entregar tudo o que tem a um novo ser em tudo idêntico a si, mas em quem não confia.
São dois Mahershala Ali para duas horas de uma exploração psicológica da condição humana. A primeira hora é lenta, talvez lenta durante demasiado tempo para um filme na Apple Tv + que pode ser interrompido a qualquer momento num computador, TV, ou smartphone – esse novo hábito pouco abonatório à experiência cinematográfica. Ainda assim, nessa primeira metade podemos conhecer o casal, na sua versão actual, e em alguns flashbacks, de como se conheceram e primeiros momentos juntos. O foco na introdução do enredo é enquadrar-nos no dilema moral de Cameron. Deverá ele deixar seguir o curso natural da vida e contar à mulher que tem uma doença que lhe tirará a vida em pouco tempo, ou aproveitar uma tecnologia inovadora que permite a clonagem com transferência de todas as vivências e consciência da pessoa para o seu respectivo clone? Um bom exercício para todos nós, revelando desde cedo uma característica que costuma associar-se aos bons filmes, fazer-nos colocar na posição da personagem central.
A segunda metade é mais dinâmica e objectiva, dando espaço para uma tensão crescente que a certo momento faz antever a junção de um terceiro género, o thriller. O aproximar do momento decisivo da escolha final de Cameron é muito bem construída. Sentimos serem justificadas as dúvidas de Cameron perante os problemas que lhe são colocados, e ao mesmo tempo vemos crescer a empatia pelo real amor que tem pela sua mulher e filho.
Mahershala Ali tem dois papeis, com óbvias similitudes, porém com diferenças obrigatórias no seu estado de espírito. Uma personagem está no início da sua existência, a outra no último capítulo da sua, e esse complexo exercício minucioso de interpretação é feito com mestria pelo actor norte-americano, naquela que é das performances mais marcantes do ano. Há uma profundidade em Ali, uma verdade que nunca lhe sai do olhar, e uma presença luminosa. Naomi Harris também não falha uma nota no seu papel, revelando mais uma vez ter excelente química com Ali. Não esquecer Awkwafina que sempre com um toque de humor valioso, se vai afirmando como uma actriz completa e com um potencial por explorar bastante generoso.
Nota ainda para uma refrescante abordagem de personagens em condição de poder perante outras. Normalmente os antagonistas, são gananciosos e puramente malévolos, mas neste caso temos uma Glenn Close a humanizar aquilo que é uma pessoa apaixonada pelo seu projecto – e sim, ambiciosa – o que a leva a tomar decisões discutíveis, mas sem uma motivação a la vilão de James Bond. É bom ver por uma vez que também existe a hipótese de haver pessoas bem intencionadas com estatutos elevados em filmes.
Swan Song é música para os ouvidos de quem aprecia um bom drama, daqueles que comovem. Um filme para quem gosta de imaginar possíveis contextos de futuros próximos, e para quem não desdenha a possibilidade de se questionar sobre o que acontece na história, e vai a fundo no pensamento simples de “E se fosse eu, o que faria?”.
1 comentário
Mahershala Ali tem uma profundidade que lhe é muito vincada. Seja qual for o seu papel, na minha opinião. A review diz tudo, é um filme do caraças, tanto para o nosso cérebro como para o nosso heart.