Durante os primeiros 3 meses de 2022 houve 7631 ocorrências de violência doméstica, das quais 80% eram vítimas do sexo feminino e que resultaram em 9 mortes, todas mulheres. Dessas ocorrências apenas 30% resultaram em prisão e 13% de medidas de coacção/afastamento das vítimas. O número mais assustador é o de 57% dos agressores não sofrerem qualquer punição, muitas vezes por suspensão da acusação, muitas vezes por pressões familiares ou do agressor sobre a vítima. É uma realidade deveras assustadora e reveladora da cultura de silêncio ainda muito presente na sociedade portuguesa, sendo mesmo revelado em Submissão que o caso representado não chegaria sequer a julgamento no tempo da ditadura, pois a lei não contemplava casos de violação no casamento.
Contando com o apoio da APAV, Submissão é um projecto importante na informação e no retrato de uma realidade invisível a todos excepto quando nos “bate à porta”. Acompanha a história de Lúcia (Iolanda Laranjeiro), uma mulher que acusa o próprio marido de violação, enquanto procura iniciar uma nova vida longe da sua influência e encontrar a justiça que procura.
Após a introdução é fácil de perceber para onde pende a balança nesta história e as dificuldades que Lúcia vai ter de enfrentar imediatamente após a agressão sexual de que é vítima. Em pranto agarra em algumas roupas, e pouco mais, e deixa a sua casa para apresentar queixa na polícia. No caminho, Lúcia é apenas um espectro, desorientada e alheia da realidade. Na esquadra, a vida não fica mais simples, as perguntas são desconfortáveis e as respostas incrédulas e incertas. Logo percebemos que o realizador Leonardo António não está aqui para construir um caminho fácil, o seu objectivo é mostrar o processo complicado, duro e acima de tudo injusto, por que passam todas estas mulheres.
As cenas no tribunal são especialmente difíceis e prolongam-se para lá do limite, deixando-nos tensos e com vontade de sair daquele lugar. A principal responsável por estarmos ali sem arredar pé é Iolanda Laranjeiro, uma mulher num mundo de homens e que chega ao seu limite de submissão. Agora quer justiça, não vai parar até ter o que merece e faz-nos acreditar que a vai alcançar, mesmo quando as probabilidades são baixas e todos conspiram para a fazer desistir do processo. Mesmo quem aparentemente está do seu lado, como Maria João Correia (Maria José Abreu – no seu último papel no cinema) que tem de se manter sem intervir para não perder a posição de poder que ocupa na sua profissão, controlada pela ambição e o machismo da sociedade. Iolanda Laranjeiro domina e eleva o filme, e parece ser a mais ciente da importância desta história para as inúmeras vítimas de violência doméstica por este país fora. Mas não é a única.
Nota-se sensibilidade no tratamento deste tema por Leonardo António no seu argumento e na maneira como estrutura a história, ignorando o passado de Lúcia e de Miguel (João Catarré), com exceção de alguns raros flashbacks, e centrando-se no processo inumano por que passam todas as vítimas de violação. A forma como o próprio agressor é retratado mostra-nos que a educação, assente muitas vezes numa sociedade machista e opressora, é o que alimenta estes comportamentos, fazendo com que a dor das vítimas seja inferiorizada e ignorada.
Surgem muitos actores sub-aproveitados como Marcantónio Del Carlo, João Didelet, Maria João Abreu ou António Fonseca, enquanto outros parecem “esmagados” pela interpretação de Iolanda Laranjeiro e tornam-se irrelevantes para lá do seu papel a desempenhar na história. Em contrapartida outros aparecem por meros minutos e deixam um grande impacto como José Raposo, Rita Brutt e Cristina Homem de Mello, que com apenas um olhar vazio e emocional, no final do julgamento, revelam mais do que palavras poderiam dizer.
A sensibilidade e o desconforto presente no argumento não se traduzem, infelizmente, no aspecto visual do mesmo. Apresenta algumas decisões infelizes como o abuso de planos de drone verticais da cidade (sempre que se muda de localização) ou o uso constante de plano/contraplano em diálogos entre personagens, ambos reminiscentes da identidade visual de qualquer telenovela moderna. Surge também uma metáfora ligada ao mar, como recordação de quando Lúcia e Miguel eram felizes, em alguns momentos-chave da história, mas sem qualquer efeito na narrativa, retirando apenas espaço e poder ao verdadeiro drama que importa acompanhar. Existem outros exemplos de cenas fora de contexto que acabam por distrair o espectador do objectivo principal do filme: o de revelar uma sociedade patriarcal agarrada a valores machistas.
Submissão é um filme relevante e pertinente por mostrar que os papéis e valores que nos são incutidos na infância têm consequências que podem colecionar vítimas e atravessar gerações e gerações, e isso urge correção o quanto antes. Com uma interpretação dominante de Iolanda Laranjeiro e um argumento com o coração no lugar certo, é pena que seja refém de um visual de matriz televisiva e que tenha tomado algumas decisões infelizes na montagem e estruturação da história.
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