O documentário nomeado ao Oscar, Soundtrack to a Coup d’Etat, traça os acontecimentos precursores do assassinato do primeiro primeiro-ministro do Congo independente, Patrice Lumumba, em Janeiro de 1961. É uma verdadeira aula de história que nasce, precisamente, da necessidade do seu realizador, o belga Johan Grimonprez, de explorar este tema com uma profundidade que raramente lhe é atribuída no currículo escolar do seu país.
Montado, na íntegra, com recurso a imagens de arquivo, este é um documentário incrivelmente completo na forma como pinta a rede de influências, interesses e causas que dominaram as relações internacionais de meados do século XX, assim como as repercussões que continuam a sentir-se nos dias de hoje. Para além da relação pessoal e cultural que Grimonprez, enquanto belga, tem com a luta pela independência de Lumumba e do povo congolês, este representa, também, um tópico de extrema riqueza temática, graças a todos os elementos que para ele contribuem. Só na situação do Congo, encontramos reunidos todos os conflitos e intervenientes que definiram aquela época. Mas vamos por partes.
Começamos, num primeiro patamar, pelo impulso pela independência dos povos africanos colonizados pelas potências Europeias. De uma forma simbólica, mas também muito pragmática, é o Congo que surge no centro do continente, no centro deste documentário, mas também no centro desta luta. E no centro do Congo está Lumumba.
A independência do Congo, por sua vez, tem implicações gravíssimas para a Guerra Fria entre a União Soviética e os Estados Unidos. Acontece que é neste país que se encontra a mina de urânio que forneceu, quase na sua totalidade, o projeto Manhattan ou a criação da bomba atómica, representando, nas décadas seguintes, uma fonte de recursos fundamental para a guerra ao armamento. É óbvio, então, o avassalador poder económico e político que a região representa para o seu antigo colonizador, a Bélgica.
EUA e a Europa Ocidental, velhos aliados, fazem tudo ao seu alcance para conter Lumumba – um líder nato, muito carismático, que teve a audácia de reivindicar os lucros provenientes dos recursos do seu país, o Congo, para o seu povo, e não para o benefício de capital privado belga e americano cuja presença no país, na verdade, só se traduzia numa nova forma de colonialismo.
Ao mesmo tempo, cresce nos Estados Unidos, a luta afro-americana pelos direitos civis, liderada por, entre outros, Malcom X, um admirador e apoiante de Lumumba e da luta independentista e anti-colonialista das várias nações africanas. Estas tentavam, por esta altura, estabelecer os conceitos de Pan-africanismo e dos Estados Unidos da África como tentativa de fazer frente às velhas potências mundiais. Com a independência das antigas colónias, o bloco asiático-africano passa a possuir a maioria na Assembleia Geral das Nações Unidas, tornando-se imperativo para EUA e URSS garantir a sua cooperação e aliança. Nikita Khrushchev, primeiro-ministro da última, opta por uma estratégia de apoio à causa dos países africanos, denunciando e criticando as práticas colonialistas do Ocidente e estabelecendo relações diplomáticas fortes com os seus líderes, incluindo Lumumba. Já Dwight D. Eisenhower, presidente americano, prefere o uso da intimidação e da força, com os países europeus da NATO a alimentar o vento por detrás das suas velas.
Ainda assim, os EUA não descuram a diplomacia e enviam, como embaixadores da cultura americana, nem mais nem menos que músicos de jazz – americanos negros cujos direitos civis nem sequer estavam ainda assegurados no seu país, a espalhar a “American way” pela Ásia, África e Europa de Leste. No seu filme, Grimonprez enquadra-os como “smoke screens” (distrações) para tentativas da CIA de levar a cabo golpes de estado estratégicos em regiões de grande instabilidade. O jazz surge, então, como soundtrack ou banda sonora das Coups d’Etat, tal como o título sugere.
No entanto, muitos músicos de jazz, por norma afro-americanos, identificavam-se com a causa de Malcom X e, por associação, Lumumba, originando contradições e conflitos fascinantes.
Pode tudo isto parecer muita areia para a camioneta de um só filme, mas Grimonprez consegue expor este emaranhado de relações e influências de forma clara, intrigante e vibrante, deixando-se levar pelo ritmo imprevisível do jazz. Assim, para além de ter um papel importante e inesperado na intriga política com a qual a narrativa deste filme se preocupa, o jazz proporciona também os limites do seu playground estético.
Tal como este género musical, Soundtrack to a Coup d’Etat evolui e cresce num ritmo não linear, por vezes frenético, por vezes contemplativo, navegando uma área cinzenta entre o entretenimento e a intervenção sociopolítica. São constantes os paralelismos entre a independência de espírito e corpo que define o jazz e a luta pela independência do Congo e outras antigas colónias africanas. De uma forma mais literal, o realizador estabelece também a ligação entre a música e a mobilização das gentes para a mudança e para a sua autodeterminação, ao mesmo tempo que ilustra a forma como o governo americano a corrompia em nome de um imperialismo cultural, que na verdade escondia um imperialismo militar.
Ainda que extremamente informativo, o documentário não se deixa intimidar pelo caráter muitas vezes aleatório, arbitrário e confuso do ambiente político que se vivia na altura. Pelo contrário, Grimonprez prospera neste caos do pós Segunda Guerra Mundial, da mesma forma que um músico de jazz prospera no improviso e na liberdade formal total. Assim, pelo meio de sequências mais longas, lineares e expositivas, encontramos momentos cómicos e satíricos que usam e abusam do poder da montagem para expor o ridículo em que estes líderes auto-engrandecedores caem na sua busca pelo poder.
É exatamente esse sentido de humor, baseado no uso criativo e livre da arte da montagem de imagem e som, que eleva este denso documentário sobre um dos mais graves assassinatos políticos do último século ao estatuto de joia cinemática. Soundtrack to a Coup d’Etat é um filme longo, carregado de informação, que, no entanto, utiliza, em todo o seu potencial, o medium do cinema para capturar a atenção do espectador, sem que nenhuma das suas escolhas se torne frívola ou fútil. Peca apenas, talvez, por uma certa falta de rumo causada pelo desejo de incluir tantas linhas históricas tão diversas. Ainda assim, uma vez que, na história, é muitas vezes impossível separar os vários atores e as suas ações, torna-se totalmente compreensível e até admirável a tentativa de Grimonprez de incluir tanta informação quanto possível no seu filme.