O tom de sátira é prevalente nesta longa-metragem de Paolo Marinou-Blanco, mas é na quebra constante da quarta parede de Gilda, interpretada por Denise Fraga, que o filme se revela. A eutanásia é um assunto sério mas o argumento de Paolo Marinou-Blanco não quer ir demasiado por esse caminho, procurando antes a empatia entre duas almas aparentemente com pouco em comum para além do desejo de morrer, e o conforto humano de não estar sozinho no momento final. A outra metade desta união é João Nunes Monteiro, no papel de Amadeu, um anestesiado agente funerário, que padece também de uma doença incurável, com a promessa de muita dor e sofrimento. Ambos procuram uma solução fácil para a morte e encontram na Joy Transition International, uma corporação fictícia especializada na morte; a solução dos seus problemas.
Mas a solução não é milagrosa e nem mesmo esta multinacional da eutanásia oferece o que promete. Esse sinal de aparente facilitismo, e de finalmente poder “resolver” a sua morte, é contestada desde o início da narrativa. Instala-se uma comédia do absurdo, repleta de humor negro, de onde se revelam vinhetas da vida passada, com predominância de tentativas de suicídio de Gilda, e onde parece instalar-se uma ideia de multiverso da morte e do fracasso em a alcançar. Procura-se propositadamente o exagero e estabelece-se no espectador o quão ridículo é este propósito. Isto é visível no trio da multinacional, mencionada em cima, que surgem como arautos da morte, debaixo de um semblante carregado e despido de empatia por parte de Eva (Sandra Faleiro), e do sorriso rasgado e mecânico de Isa (Joana Ribeiro) e Bruno (Alexander Tuji Nam). O desconforto perante o sofrimento revela-nos a todos como humanos e coloca-nos na pele de Gilda.
É aqui que Gilda grita ao espectador para ficar bem perto. “Não vai fugir agora não. Veja o sofrimento” – é a frase que ecoa em nós. A transição é imediata no ambiente da narrativa e parece contagiar os intérpretes. De uma despreocupação leve, cómica, e sempre muito “ácida” passamos a um escalar da emoção. Muito fruto do duo de protagonistas cuja química fria e distante, à primeira vista, se transforma progressivamente numa tocante história de amor e empatia. Denise Fraga é uma amálgama de emoções contraditórias, riso e choro / amor e ódio, muitas vezes na mesma cena, demonstrando uma conexão profunda com Gilda e um trabalho exímio na construção da sua personagem. A constante, nesta avalanche de sentimentos contraditórios, é a facilidade com que o espectador está com ela nesta viagem, desde os primeiros instantes, mesmo quando não concorda com as suas reacções/decisões. Um pouco como a questão da eutanásia, concorde-se ou não com o procedimento, existe a obrigação moral de ouvir e respeitar a pessoa assim como a decisão tomada, mesmo quando esta nos custa profundamente. Do outro lado, como espelho de Gilda, temos Amadeu, interpretado por João Nunes Monteiro, com um papel contido e de repressão de sentimentos, mas igualmente fundamental para a ligação emocional estabelecida.
Nem tudo é, no entanto, brilhante e à boleia de um argumento tocante e de um elenco excelente temos muito pouca atenção à identidade visual e sonora do filme. Na banda sonora de Toni M. Mir, tudo parece girar em torno da sátira e da comédia, como é suposto, mas surge desinspirado e sofrível. A nível visual, com excepção de algumas vinhetas das mortes de Gilda mais inspiradas, não existem momentos marcantes ou vontade de emocionar o espectador, o que só exacerba a realização e o potencial do que este Sonhar com Leões se poderia ter tornado, com um trabalho mais cuidado no apuro visual. Para ver o impacto visual da eutanásia numa narrativa não é preciso ir longe, basta lembrar como certas imagens de The Room Next Door (2024) de Pedro Almodóvar, pela lente de Eduard Grau, continuam a reverberar na memória de quem o viu.
Sonhar com Leões é desequilibrado na maneira como o argumento nos revela o sofrimento e a morte, mas verdadeiro no modo como a emoção fluí, e se transforma, na viagem de descoberta do seu duo Gilda e Amadeu. Ancorado numa química improvável, mas transbordante, entre Denise Fraga e João Nunes Monteiro, e na sensibilidade de Paolo Marinou-Blanco, no tratamento da eutanásia, este é o filme português que ninguém pediu mas que tantos precisam ver e, acima de tudo, sentir.