Song of the Sea está integrado na programação da 23ª edição da MONSTRA | Festival de Animação de Lisboa, na Restrospetiva Cartoon Saloon, cuja sessão ocorre dia 9 de Março às 15h00 na Cinemateca.
As selkies são criaturas mitológicas encontradas no folclore de países anglo-saxónicos. Estas criaturas possuem a capacidade de mudar de uma foca para um humano ao retirar as suas peles e vice-versa ao voltar a vesti-las. Quando em forma humana são criaturas belíssimas e com imenso carisma capaz de mudar vontades. Há um claro paralelo com sereias, com as quais partilham muitas das características principais, mas ao focar-se nas particularidades das selkies, Tomm Moore cria, neste Song of the Sea, uma bonita homenagem às tradições do seu país de origem – a Irlanda.
Tomm Moore é já uma lenda no panorama da animação mundial e co-fundador do estúdio Cartoon Salon, juntamente com Nora Twomey e Paul Young. Foi apresentado ao mundo com a co-realização de uma longa-metragem (com Nora Twomey) chamada The Secret of Kells em 2009, também ele a beber do riquíssimo património cultural da Irlanda.
O argumento centra-se na vida familiar, nas querelas entre irmão (e irmã neste caso) e na vida após uma grande perda – o luto é uma importantíssima parte deste filme e também a mais bela. Todas as personagens vivem o luto de maneira totalmente diferente e distinta – revestindo o argumento de uma complexidade emocional profunda. Mas enquanto a viagem emocional é profunda o equilíbrio é mantido através de uma progressão simples e natural. Tudo parece assentar que nem uma luva desde os alicerces assentes na relação intempestiva entre os irmãos, na devastadora e profunda depressão do pai, alheio ao prazer de viver e no controlo imposto pela avó, impotente para o animar e procurando salvar quem conseguir no seio familiar. Enfrentar, frente a frente, os efeitos da perda de uma mãe numa família é de uma grande coragem e também a sua maior glória. Desenganem-se, apesar desta ênfase na dor humana, quem achar que não existem momentos felizes. Existem, no meio de tanta dor, pequenos oásis de doçura, de momentos cómicos e, sim rejubilem, de criaturas muito fofinhas e adoráveis reminiscentes de outro grande estúdio de animação, o estúdio Ghibli, com a qual partilha a habilidade de nos conectar emocionalmente com cada uma das suas histórias e de criar uma identidade visual distinta de tantos outros produtos de animação mundial.
Sendo a natural evolução de The Secret of Kells (2009), onde já se notava um grande cuidado na animação e na bonita palete de cores, ambos ao serviço do argumento e das claras influências célticas no traço das personagens, este Song of the Sea é um triunfo, ainda maior, da arte da animação. Revestido de uma simplicidade que poderá enganar a maestria de que se reveste, com um uso inteligente da luz para destacar certos sentimentos, personagens ou o caminho emocional que trilha. Ainda destaco as imensas referências de arte céltica patente nas runas omnipresentes e na criação de molduras visuais, dando a sensação de criar “quadros” dignos de fazer parte de qualquer colecção de arte contemporânea que se preze. A palete de cores é riquíssima e varia de acordo com os sentimentos dominantes, o ambiente da acção e até de acordo com a personagem central na cena em questão. O uso de formas geométricas simples em primeiro plano nas paisagens (nunca imaginei ver um triângulo isósceles como uma escarpa rochosa mas resulta maravilhosamente) ou no background através de linhas, setas ou padrões que parecem guiar o nosso olhar para onde a atenção deve ser dada sem nos apercebermos.
O sentimento de assistirmos a uma fábula imemorial e mágica é inconfundível e reforçado pela banda sonora de Bruno Coulais e Kila e com a colaboração de Nolwenn Leroy. As sonoridades modernas fundem-se com a alma céltica, patente nos instrumentos tradicionais, e criam um ambiente emocional perfeitamente calibrado para nos ligar a este mundo aparentemente distante mas que se torna universal e parte de todos os espectadores.
Song of the Sea é um triunfo da animação e a confirmação da existência de outro grande estúdio da animação – o Cartoon Saloon. Uma fábula mágica, inspirada na mitologia céltica, que esconde na sua simplicidade visual um apuro artístico inegável e uma bonita reflexão sobre a perda e o luto como forma de superação de nós mesmos e dos nossos medos. Imprescindível para pequenos e graúdos.