Sombra (2021)

de Rúben Faria

Identidade luso-americana

Há muito tempo que Portugal corre para criar uma indústria cinematográfica rentável, tanto criando a sua própria identidade como procurando influências para além da sua própria fronteira. Desde filmes comerciais ao cinema de autor, vários bons e maus exemplos foram presenteados ao público português. Sombra, o novo filme escrito e realizado por Bruno Gascon, é um daqueles casos onde temos à nossa frente o melhor dos dois mundos: um bom orçamento para a produção e distribuição do filme, bem como o toque sensível e artístico que remete, ainda que vagamente, a um cinema independente.

Este filme procura retratar a dor de uma mãe que perde o seu filho, bem como as consequências que isso possa ter para a família e restantes envolvidos. A premissa inspira-se fortemente no desaparecimento de Rui Pedro, que ocorreu em Portugal no ano de 1998. O foco desta história é, claramente, a mãe (interpretada de forma corajosa por Ana Moreira), pois é ela o ponto de equilíbrio de todo o núcleo emocional, algo que prova ser uma decisão criativa que funciona de forma exímia. A direção imposta neste filme é, talvez, um dos seus pontos mais fortes. Direção será mesmo a palavra correta, tendo em conta que Gascon nunca deixa que o seu filme perca a concentração daquilo que realmente interessa e que é relevante para a história, bem como para as suas personagens.

O mais interessante neste guião, e a sua posterior representação, é a forma audaz como aborda o assunto, sem ter qualquer tipo de receio de assumir certos temas ou emoções, bem como possíveis cenários ou implicações, mesmo que estejam subentendidos. É um enredo que incorpora tanto o drama da realidade como a realidade dramatizada. Não se impede de explorar situações delicadas e ligeiramente chocantes, bem como de questionar e até pôr em causa a protagonista, algo que não é muito comum e aceitável quando se trata de uma mãe que perde o seu filho. Por essa coragem, o argumento recebe muito valor. Em geral está bem escrito e delineado, com apenas algumas falas das personagens que deixam a desejar. Não se perde em enredos paralelos e secundários e é muito focado na história principal, algo que é bem apoiado pela realização.

Neste ponto, Gascon mostra um equilíbrio fascinante. É agradável a forma como consegue abordar as emoções individuais e interpessoais, mantendo o filme minimamente acessível e (por falta de melhor palavra) mainstream. A resposta mais simples para isto vem das claras influências que o realizador teve para se inspirar, sendo a mais notória Prisoners (2013) de Denis Villeneuve. Esta influência passa por tudo um pouco: estrutura, mood, fotografia, música. No entanto, acaba por se expressar através de uma linguagem estrangeira, nomeadamente de Hollywood, não explorando uma dicção cinematográfica lusa. Dito isto, todas as áreas técnicas estão de parabéns. A fotografia é muito sólida, com excelentes enquadramentos e uma iluminação naturalista mas sempre com um toque dramatizado. O som (que costuma ser, em Portugal, alvo de críticas pela falta de qualidade) apresenta-se polido e com uma direção concisa. A montagem, apesar do ritmo do filme pecar por não se sentir sempre fluído, acusando algumas quebras abruptas, agrada na sua generalidade. A banda sonora, fortemente inspirada no cinema americano do mesmo género, assume a sua própria personalidade no filme, com um ambiente orquestral que dá vida ao drama apresentado. Infelizmente torna-se um pouco intrusiva em certos momentos, parecendo querer forçar o espectador a sentir uma determinada emoção.

Numa pequena menção, o elenco desta obra é repleto de caras conhecidas do público português, contendo nomes como Miguel Borges, Vítor Norte, Lúcia Moniz, Joana Ribeiro e até Sara Sampaio. Como um todo, as performances são sólidas e equilibradas, notando apenas algumas falas forçadas ou demasiado dramatizadas. O destaque do elenco vai para Ana Moreira, em quem o filme se apoia e, claramente, é quem tem mais tempo de ecrã para brilhar. A atriz mergulha numa interpretação pesada e complexa, sendo palpável a dor da personagem que incorpora.

Apesar de estar longe de ser algo inovador, muito menos perfeito, Sombra é um filme que se mostra capaz e arrojado o suficiente para se fazer ouvir. Consegue comover e fazer sentir (principalmente a quem já for progenitor), bem como iluminar questões sociais graves e delicadas como o rapto de crianças e a negligência das forças da justiça. Fá-lo de forma audaz mas com uma camada mais apelativa ao público geral, conseguindo uma competência técnica acima da média nacional. O cinema português precisa de mais obras como esta: filmes mainstream que explorem a arte emocional com uma abordagem cativante mas ao mesmo tempo profunda.

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