Existe poder no sentido de comunidade. Naturalmente, consideramos esta como uma força positiva, beneficiando paralelamente o indivíduo como a sua sociedade. Queremos acreditar nesta como um conceito puro, esperançoso e focado principalmente na saúde e fortuna dos nossos próximos. Todavia, a irmandade também nasce do veneno. Na malícia surge uma irónica e inebriante névoa de poluição atmosférica, um nevoeiro intoxicante, alastrando-se por colectividades com potência suficiente para nublar a nossa visão do mundo e dos nossos familiares, amigos e desconhecidos, para ressuscitar o cadáver putrificado de uma comunidade com uma nova vida fosca. Existe empoderamento nesta forma insalubre de conexão, um empoderamento que permite uma pandemia de ódio.
Após uma introdução subtilmente tenebrosa que se infiltra nas nossas veias através da nossa ingenuidade, Soft & Quiet revela imediatamente o seu negrume com um twist que molda a sua narrativa. Um grupo intitulado “Filhas pela União Ariana” reúne-se para discutir medidas de propaganda, até a sua líder deparar-se com uma vítima do seu passado. Esta é a sua história. No conforto comunitário, os monstros são descobertos. Aliás, não são descobertos, simplesmente revelam-se naturalmente, partilhando discursos revoltantes polvilhados com uma trivialidade particular, aptos para aliciar mentes a aderir ao seu caminho repugnante. Afinal, parece “normal”, parece meramente um compreensível desabafo desprovido de intenções hostis. O terror desta longa-metragem reside neste aspecto comunitário que fornece conforto à violência, no método de impregnação nazi dentro do nosso mundo; como um pequeno passo ou uma ínfima fissura pode direcionar-nos ao inferno.
Beth de Araújo, realizadora e argumentista, invade o nosso espaço com uma confiança silenciosa, marcando as suas pegadas cinemáticas numa propositada banalidade rotineira. Tudo estabelecido num plano-sequência, para dar a impressão de um único take, com uma imagem abatida e um desequilíbrio ocasional de intensidade nos brancos – como as suas protagonistas –, que permeiam a nossa atmosfera com um conforto desconfortável. Soft & Quiet funciona como uma bomba, sempre presente connosco desde o início, invisível à primeira vista até o seu crescendo sonoro lentamente ensurdecer a razão e assinalar a iminência da sua explosão. Começa com uma conversa, acaba com sangue.
É uma experiência dolorosa que se recusa a oferecer uma resolução. A sua brutalidade é confrontacional, exibindo um espelho fragmentado no ecrã para podermos enfrentar as nossas próprias pessoas como também os nossos próximos. Por este motivo, é ainda mais frustrante ler comentários negativos que encaram esta longa-metragem com uma simplicidade ridícula de “racismo mau”. Claramente, essa é uma das suas mensagens, contudo, a sua complexidade ocorre no seu progresso narrativo. No reconhecimento preliminar que estas personagens podem possivelmente ser nossos familiares, amigos como vizinhos. A banalidade das suas conversas, as suas gargalhadas amigáveis, o calor dos seus abraços e a forma como apoiam novos membros neste grupo, pessoas desconfortáveis com saudações nazis mas contentes pela sua recepção e pelo amor que receberam, dispostas a ignorar, aliás, até a participar nestas supostas brincadeiras. Um ambiente acolhedor mas estranho e com uma sensação predatória, equipado para enrolar as nossas virtudes num cobertor colonizador e infectar convicções, florescendo através do racismo institucional e de grupos dispostos a regar esse terreno fértil. A máscara é retirada e a manipulação domina este lar, substituindo o apoio e amor por condescendência e inadequação, estipulado para lutares pelo agrado da tua nova comunidade, que te acolheu quando te sentias sozinho e revoltado.
Resumir Soft & Quiet como um Crash (2004) ou como “racismo mau” é completamente disparatado, pois é uma obra sufocante e tragicamente inteligente que demonstra as suas sementes, a sua expansão na educação e nas comunidades, e como nunca podemos baixar a guarda ou criar espaço e conforto para estas retóricas de discurso de ódio. Beth de Araújo elabora esta narrativa como um plano-sequência para demonstrar precisamente como um flutuante pensamento consegue repentinamente evoluir para violência. A realização e as excelentes performances deste elenco prendem-nos na sua perversa realidade. Os seus comportamentos, as suas decisões e as suas consequências apenas parecem absurdos para quem é ignorante do nosso mundo. Existem demasiados eventos sinistros, tanto mundiais como dentro do nosso país, semelhantes a esta história para fingirmos que é apenas um filme.
O mal entra nas nossas vidas a fazer jogging. É assim que este fantástico argumento interpreta a invasão da supremacia branca. Temos uma reunião, uma professora primária, uma refeição e tristeza reconfortada. Nada indica directamente o destino destas personagens. Parecem pessoas normais. São pessoas normais. Apesar de ser desgastante e apavorante, reconhecemos a sua humanidade. Esse é o verdadeiro horror de Soft & Quiet. É necessário recordar sempre que o extremismo é servido com uma fatia de tarte.