Snow White (2025)

de João Iria

Não existe beijo, linguado ou bate chapas capaz de ressuscitar este filme morto. Tragicamente, pois a sua equipa criativa é uma que suscita imediatamente o entusiasmo e a curiosidade de qualquer príncipe, rainha malvada ou empregado doméstico animal: Marc Webb, realizador desta versão “actualizada” de Snow White é responsável por (500) Days of Summer (2009); Rachel Zegler, a angelical estrela de West Side Story (2021), interpreta a graciosa icónica protagonista; e Gal Gadot, autora do vídeo Imagine (2020), encarna uma bruxa malvada sedenta pela morte de inocentes (casting perfeito). A realidade é que nenhum destes, maioritariamente, fantásticos elementos importam para a produção desta longa-metragem pois Snow White faleceu muito antes sequer do seu nascimento. É uma obra sem alma ou beleza suficientes para atrair os rostos e a atenção de desconhecidos, familiares ou sequer queens invejosas – é quase impossível sentir inveja de um morto. Não existe coração para roubar e confirmar o seu assassinato. É um espelho disforme de nostalgia que responde a ninguém.

O clássico conto de fadas alemão, publicado pelos Irmãos Grimm em 1812, maravilhou o mundo com a sua adaptação em animação para o cinema produzida por Walt Disney, a sua primeira longa-metragem. Snow White and the Seven Dwarves (1937) transformou completamente este universo audiovisual, provocando o avanço tecnológico deste formato criativo, abrindo um espaço inédito para este meio artístico, e – através do seu estrondoso sucesso financeiro – permitindo o crescimento e a evolução do principal nome associado ao filme, resultando, actualmente, no seu domínio multibilionário do mercado. Quase 100 anos depois, perante uma moda cansativa de remakes live action de clássicos de animação, que o estúdio insiste irritantemente em continuar, atingimos inevitavelmente esta repetida passagem pela fábula, agora com actores de carne e osso, surpreendentemente menos credíveis que os traços coloridos.

Esta é a história de uma jovem bondosa princesa, Snow White (Rachel Zegler), escravizada pela sua madrasta, a Rainha Malvada (Gal Gadot), cujo ritual de beleza único implica rimar para um espelho falante e confirmar a sua beleza como a superior do reino: “Mirror, Mirror, on the wall… Who’s the fairest of them all?”. Quando a resposta pára de agradar, aparentemente a Branca de Neve é mais fairest, a Rainha ordena o seu assassinato para manter a sua coroa de elegância – nunca é referido interesse em impedir a próxima sucessora do trono. Todavia, o Caçador não consegue cometer este acto repelente, libertando a Snow White para uma floresta. Agora uma fugitiva do reino, a princesa encontra refúgio numa modesta casa repleta de anões (?) benevolentes (com um design em CGI verdadeiramente medonho), numa coleção de peluches (animais?) adoráveis, e num grupo de bandidos que persiste em lutar pelo, supostamente falecido, rei, liderados por Jonathan (Andrew Burnap), o novo interesse romântico.

Snow White não é péssimo. É polvilhado com uma mensagem bonita sobre bondade perante outros, desconhecidos ou próximos, e sobre ser proactivo nos nossos sonhos (nunca esperar por um desejo), uma performance encantadora e charmosa de Rachel Zegler, e instantes moderadamente agradáveis que ajudam, um pouco, a ignorar o que realmente estamos a experienciar: um filme aborrecidamente medíocre, visualmente esquecível, e desprovido de uma visão cativante, que esconde a sua insipidez com um véu de modernização. O “motivo” para esta trend cinemática de “actualizar” as longas-metragens de animação para uma nova geração, uma que encara animação como um produto infantil. Ocasionalmente, presenciamos o típico momento de ridicularização do conto original para demonstrar à sua audiência uma consciência dos tempos modernos e sentirmo-nos superiores a uma obra que revolucionou as artes na sua estreia, mas recriando os seus icónicos momentos porque apesar de “ser melhor”, o seu entretenimento está dependente do factor nostalgia da “versão inferior”. Como a maioria dos remakes live action da Disney, é condescendente com o seu público e com a sua própria filmografia. Curiosamente, nunca a um ponto de frustração. Não tem sangue suficiente para atiçar essa raiva.

Snow White está demasiado perdida à procura de uma narrativa para conseguir impactar emocionalmente. O argumento confuso de Erin Cressida Wilson e a realização inconsistente de Marc Webb vacilam entre prestar homenagem, ou seja meramente recriar os eventos originais com desnecessárias adições, e prosseguir num trajecto oposto, um que inclui a canção “princess problems”, com uma infundada lógica que provoca demasiadas dúvidas acerca de como este mundo fantasioso funciona economicamente. É indeciso e está descoordenado com a sua própria história e a sua génese imaginativa, estabelecendo subenredos insignificantes – um sendo absurdamente hilariante (despropositadamente) que envolve a voz de uma das personagens –, e criando alegorias subaproveitadas e esquecidas. Portanto, limita-se a enclausurar-se no conforto da sua prisão genérica, contradizendo a sua própria lição.

Despido de beleza verdadeira, a futilidade de Snow White não consegue sequer acordar o espelho para uma resposta. A formidável voz de Rachel Zegler está apta para nos distrair do ritmo banal das novas canções, cujas letras habilidosas são acompanhadas por uma harmonia rejeitada de outros musicais, mas a neve permanece manchada pelo seu terreno. A energia que sentimos em sequências melodiosas, na sua introdução e nas imitações é meramente uma ilusão. Como o acting de Gal Gadot, este é um filme sem vida. Assistir a Snow White é como presenciar o funeral das adaptações live action de animações Disney, aliás somente sente-se assim, duvido que seja o caso para o estúdio multibilionário que nunca vai deixar nada morrer enquanto houver dinheiro. Quem diria que o príncipe desta nossa geração é um CEO cujo repugnante beijo está destinado a qualquer princesa que possa ser considerada lucrativa. Princesa é a palavra errada, lamento, propriedade intelectual é a designação correcta. Eis o problema. Eis o motivo porque nenhuma desta série de longas-metragens praticamente aborrecidas e medíocres sobrevive, a razão pela sua imediata morte. Não existe amor. Não existe paixão. Porque não são humanas. Aliás, não são consideradas humanas.

Aqui jaz o túmulo da personagem que estabeleceu o domínio Disney, que fecundou o seu império artístico, reduzida a um nome, a propriedade intelectual. Os lábios desvaneceram, agora são ossos. Estamos a jogar ao Weekend at Bernie’s (1989) com uma figura cadavérica. A Disney pode tentar desviar a culpa para a sua equipa criativa ou as suas protagonistas, não seria a primeira vez, mas não podemos nos deixar enganar por comentários triviais nos media, a culpa deste monstro é SOMENTE do estúdio. Simples. Que mais se pode dizer? Aguardemos pelo próximo beijo.

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