Numa primeira instância, Small Things Like These (Pequenas Coisas Como Estas) poderia ser facilmente confundido como mais um filme de Natal. No entanto, por detrás da suavidade do cenário e da aparente tranquilidade da época festiva da vila irlandesa, o filme revela-se uma meditação profunda e inquietante sobre moralidade e passividade. Realizado por Tim Mielants, e baseado na aclamada obra literária de Claire Keegan, o filme transcende a narrativa convencional, desafiando o espectador a questionar como gestos aparentemente insignificantes podem mudar o curso das vidas individuais – e transformar uma comunidade.
Em 1985, na vila Wexford, Bill Furlong (Cillian Murphy) protagoniza uma vida simples como vendedor de carvão, mas capaz de sustentar a sua mulher e cinco filhas. Contudo, a sua paz é abalada quando, durante uma entrega, testemunha uma jovem a ser forçada a entrar no convento local, nas mãos da sua mãe. Este momento, marcado por gritos de desespero e gestos brutais, desenterra memórias dolorosas do passado de Bill e obriga-o a confrontar a realidade das Lavanderias de Madalena – instituições geridas pela Igreja Católica que adotavam medidas punitivas contra mulheres que apresentavam comportamentos “imorais”. À medida que Bill se expõe mais à realidade dentro do convento, começa a questionar a sua própria moralidade e o silêncio coletivo que permitiu que tais atrocidades perdurassem ao longo dos anos.
Bill representa o dilema moral que muitos preferem ignorar: até onde estamos dispostos a ir para confrontar os horrores que nos circundam, quando as estruturas que os perpetuam estão tão profundamente enraizadas nas nossas vidas? O filme não se preocupa tanto em dar respostas; prefere lançar estas questões diretamente para a plateia, deixando espaço para que cada espectador se defina diante da responsabilidade – ou da falta dela – em face da injustiça.
A realização de Mielants imerge o espectador na atmosfera densa e introspetiva da Irlanda rural dos anos ’80. A cinematografia, com a sua paleta de cores sóbrias e acinzentadas, transmite não só a frieza do ambiente, mas também a repressão que marca a vida dos habitantes daquela comunidade. Nem mesmo as faixas mais animadas dos anos ’80, como Come on Eileen e Don’t You Want Me, conseguem romper o manto sombrio que a realização e a fotografia cuidadosamente tecem. A banda sonora, sempre discreta e comedida, nunca se sobrepõe à ação, mas intensifica a tensão emocional da narrativa.
Embora a premissa de Small Things Like These seja envolvente, a narrativa é prejudicada por um ritmo algo irregular. Algumas cenas arrastam-se e a sua transição nem sempre ocorre com a fluidez espectável, culminando numa recorrente sensação de pausa que pode desviar a atenção do espectador. Adicionalmente, a jornada interna de Bill é envolvente, mas o desenvolvimento das personagens secundárias é limitado e enfraquece a expansão emocional do filme. Por exemplo, a Madre Superiora (Emily Watson), ainda que tenha uma presença intimidante inegável, não é totalmente desenvolvida, ficando restrita ao papel de um mero símbolo de opressão, sem a profundidade psicológica que poderia torná-la mais complexa e interessante.
O grande marco de Small Things Like These é, sem dúvida, a atuação de Murphy, capaz de refletir a luta interna e emocional de um homem que, apesar de não conseguir ignorar o mal à sua volta, teme as consequências inerentes à sua rebeldia. Murphy, já habituado a interpretar personagens taciturnas e melancólicas, entrega mais uma vez uma performance contida, mas repleta de nuances. Ele consegue comunicar uma vasta gama de sentimentos com apenas um olhar ou um gesto, exigindo da nossa parte uma imersão completa para captar a complexidade emocional de Bill.
Embora Small Things Like These tenha como foco a figura do protagonista como representação da resistência individual contra uma instituição corrupta, a sua mensagem transcende essa dimensão, abordando os mecanismos de controlo social e as dinâmicas de conivência que sustentam a perpetuação dos abusos ao longo do tempo. O título, que faz referência às “pequenas coisas”, apela diretamente para os pequenos gestos de coragem que, quando somados, podem desafiar um sistema implacável. O filme transmite de forma clara que os abusos prosperam quando a sociedade cria barreiras quase intransponíveis para a denúncia, tornando a coragem de um único indivíduo um ato de enorme significado e relevância.
Small Things Like These é uma obra que, apesar das suas falhas estruturais, deixa uma marca indelével. No delicado entrelaçar de pequenos gestos e grandes omissões, é revelada a fragilidade da moralidade humana e o poder silencioso das instituições. O filme não pede desculpas nem procura justificar a inação, mas, ao contrário, expõe as tensões que se formam quando os valores são confrontados por um sistema inflexível. Acima de tudo, é uma narrativa que não se limita a uma época ou lugar, mas que, ao olhar para um passado sombrio, ilumina as complexidades do presente.