Slocum et Moi integrou a programação da 25ª edição da MONSTRA | Festival de Animação de Lisboa, na Secção Competição Longas. Foi exibido no dia 26 de Março, no Cinema São Jorge.
O realizador, e também animador, argumentista e director de fotografia, Jean-François Laguionie, é já um veterano no universo da animação. Sempre amado e reconhecido múltiplas vezes pela crítica e por festivais de cinema, incluindo alguns prémios em Cannes e nos Césares do seu país-natal, França, continua, no entanto, quase desconhecido do público geral e da aclamação mundial.
Slocum et Moi (A Boat in the Garden / Um Barco no Jardim), é a sua sétima longa-metragem e acompanha um menino chamado François durante a sua infância (V.O. Elias Hauter). Vive nas margens do rio Marne com o seu pai e mãe, e passa o seu tempo a desenhar e a sonhar acordado. Quando a família decide começar a construir um barco no jardim, descobre também a alcunha secreta de seu pai, Slocum (V.O. Grégory Gadebois). Num misto de descoberta e aventura, procura saber mais sobre o passado do pai e da razão para o nome misterioso pelo qual é tratado. Esta é a nova odisseia de Jean-François Laguionie no mundo da animação.
O termo odisseia relembra sempre as aventuras de um passado distante por terras gregas. Homero é aqui substituído por Laguionie e Ulisses por uma criança de nome François, criando a sua própria epopeia e história de aventuras, sem saírem do jardim que os circunda. A tradução do nome do filme para português está intrinsecamente ligada ao argumento de Jean-François Laguionie, que equilibra a evolução da construção do barco com o próprio crescimento do pequeno François, parecendo criar uma ligação verdadeiramente simbiótica. As vitórias pessoais trazem um avanço significativo na sua construção enquanto os erros e as dúvidas retiram algumas tábuas ou originam acidentes inesperados, como parte integrante da vida.
Das mudanças constantes operadas no pequeno François, mantém-se firme a relação entre os seus pais, Geneviève (V.O. Coraly Zahonero) e Pierre. É bonita a forma como a narrativa tem o condão de revelar o amor na simplicidade dos gestos, dos olhares e, particularmente, no silêncio. Pierre não é um homem particularmente afectuoso ou de contacto próximo, papel que é deixado exclusivamente para a mãe, mas nunca há dúvidas do seu imenso amor e devoção pelo filho. As dúvidas, essas, ficam sempre em François e formam aliás a verdadeira odisseia deste filme – a compreensão de que o amor adquire várias formas e diferentes maneiras de ser expresso. O que nos falta, como humanos, é a capacidade de discernir como ele se revela em cada um e como é articulado para o mundo que nos rodeia. Uma lição cada vez mais necessária de ser reaprendida e relembrada num mundo cada vez mais dividido.
Somos ainda embalados numa banda-sonora de Pascal Le Pennec, a beber de inúmeras influências como os clássicos do cinema romântico americano ou as orquestrações melodiosas modernas dominadas pelo piano e à qual se adiciona uma pitada de nostalgia francesa representada no seu instrumento mais icónico, o acordeão. A paleta de cores reforça também essa escolha pela animação tradicional, elegante na sua simplicidade, e no uso constante de tons pastel para reforçar a beleza do que os nossos olhos percepcionam do tempo passado na infância. O encanto do analógico e do táctil é constantemente reverenciado a cada traço do lápis e do deslizar das mãos no piano e conquista o espectador sem grande dificuldade.
Slocum et Moi é uma prenda de Jean-François Laguionie para todos os pais, presentes e de coração, e uma lição para todos os filhos, independentemente da idade. Na beleza etérea dos quadros minimalistas, que pinta a cada fotograma, revelam-se sentimentos bonitos sobre família, amor, crescimento e o sentido da vida. Perceber que procurar o seu sentido é tão inútil como ter um barco no jardim, é a cereja no topo do bolo.
P.s.: Filme obrigatório para ver com o pai, se tiverem ainda a sorte de o ter, o mais rápido possível. Não vale esperar um ano até ao próximo dia do pai.