Sing Sing (2023)

de Rafael Félix

Só nos Estados Unidos estima-se que, entre prisões locais e federais, existam cerca de 2 milhões de pessoas encarceradas por detrás de um sistema prisional concebido para, não só os manter presos, mas para garantir que assim permanecem, indefinidamente, ciclicamente. Não é um caso exclusivamente norte-americano, diga-se. Da mesma forma, o sistema prisional português é também um programa de mero encarceramento para 13000 pessoas, e quando este acontece sem aquele que deveria ser o pilar fulcral do sistema prisional – a reabilitação e a reinserção, seja ela social, laboral ou familiar – criam-se antros de desumanização com efeitos muitas vezes irreversíveis naqueles que por lá se vêm passar.

Sing Sing apresenta um antídoto. Centra-se no programa RTA (Rehabilitation Through the Arts), presente na prisão de máxima segurança Sing Sing desde 1996, em Nova Iorque, onde é dada a possibilidade aos habitantes da instalação de desenvolverem peças de teatro e representarem para uma audiência.

Aqui estes homens encontram-se para libertar o seu imaginário, despir os rótulos que o quotidiano, dentro e fora do sistema, lhes colocou e descobrir um porto seguro, onde podem estar vulneráveis e acompanhados, perdido num lugar que é construído para quebrar o espírito daqueles que o habitam. Aqui e ali Sing Sing mostra a brutalidade do sistema prisional – as rusgas, as armas escondidas, o jogo viciado que é o sistema jurídico – porém existe uma relação de confiança para com o público. Assume que não precisa de mostrar a violência que é o sistema de encarceramento, acredita que as visões de cimento a perder de vista, o arame farpado, os uniformes e as conversas através de paredes sejam suficientes para que, quem está sentado no conforto de uma cadeira, de um sofá ou de uma cama, consiga conceber o que a privação da liberdade quer dizer, para corpo e espírito.

Assim abre-se o espaço para a beleza da imaginação. Já muito se disse sobre o poder curativo e reabilitador das artes e é efetivamente isso que o RTA tem em mente, porém, pela forma como muita da crítica tem abordado Sing Sing parece que as “artes” são uma entidade divina para a qual estes homens estendem a mão para serem iluminados. É como, se no seu inconsciente, tenham tomado estes homens como intelectualmente inferiores, sejam por estarem sob alçada prisional ou pelo seu aspeto e apresentação, esquecendo-se que as artes, a representação, e a criação são feitas e imaginadas por seres humanos, por pessoas com vidas, histórias e memórias e não por uma entidade metafísica omnisciente à qual apenas alguns têm acesso e sob o qual a crítica, com o seu olhar interpretativo e intelectual, admite que estes possam estar a aceder. Não é por acaso que a maioria dos atores presentes são ex-reclusos que já passaram pelo programa e as audições que estes fazem para a peça do RTA são também as suas audições para o filme.

Sing Sing é sobre encontrar, num lugar de profunda barbárie, o calor do companheirismo. É sobre descobrir formas, não de ser, mas de conviver com a nossa própria pele, através da representação, da colaboração e da paixão partilhada, encontrar conforto em existir, connosco e com o outro. Divine Eye, a personagem de Clarence Maclin, é trazido para este grupo depois de ser introduzido no filme a extorquir dinheiro a um recém-chegado a Sing Sing. Tem um andar pesado, a postura de quem espera o confronto ao virar de cada esquina, mas cita Shakespeare de olhos fechados. Ao longo de Sing Sing, Divine Eye, interpretado pelo próprio, não perde a dureza que marcava que sua linguagem corporal, mas ganha um relaxar para com o exterior, há conforto na ligação aos membros do coletivo. Paul Raci e Colman Domingo são brilhantes, o primeiro como diretor do espetáculo e o segundo como um dos principais impulsionadores deste programa, homem a tentar provar a sua inocência e que encontra no teatro um propósito que vai bem além de si mesmo, captado através de película de 16mm que dá o último lustro documental que Sing Sing merece.

Greg Kwedar e companheiros fazem o possível para não cair nos habituais clichés dos dramas prisionais. Não se esconde da brutalidade, porém contorna-a com a gentileza de espírito das suas personagens e escolhe celebrar a resistência do querer humano em vez daquilo que o tenta destruir. Já temos muitos filmes assim, estes também fazem falta.

4/5
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