Simone: Le Voyage du Siècle (2022)

de Bruno Sant'Anna

Quando a indústria norte-americana de cinema descobre uma fórmula de fazer filmes lucrativos que não exige grande esforço, sabemos que vai reproduzir este método até à exaustão, até o esvaziamento completo da sua essência. Os biopics são uma dessas galinhas de ouro de Hollywood que agora começam a ficar cada vez mais magras e os seus produtos cada vez menos valiosos. Elvis (2022), Bohemian Rhapsody (2018) e Judy (2019) são alguns recentes exemplos de como o apelo ao saudosismo e à cultura de celebridade podem resultar num completo apagamento da complexidade de indivíduos importantes para a cultura, beirando o desserviço completo das suas memórias. Sem mencionar a sua qualidade técnica extremamente baixa, na beira do amadorismo em algumas ocasiões.

Esta introdução serve para contextualizar este género cinematográfico e como este se encontra extremamente desgastado. Para a surpresa do leitor digo que, ainda assim, há biopics que conseguem surpreender, captar a atenção e mostrar o porquê deste formato ser ainda possivelmente bem-sucedido. Este é o caso de Simone: Le Voyage du Siècle, a nova longa-metragem do realizador Olivier Dahan sobre a história de uma das personalidades francesas mais amadas pelo seu país e pelo mundo: a magistrada Simone Veil.

O trajeto de Simone Veil está entrelaçado com a história da Europa durante o século XX. Nascida numa família judia, Simone vivenciou a perseguição aos judeus durante a invasão da França pela Alemanha nazi, na Segunda Guerra Mundial. Ela e a sua família foram presas e enviadas para o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau no ano de 1944, onde apenas ela e a sua irmã, Madeleine, sobreviveram entre os seus familiares. Este evento a traumatizou para sempre, deixando sequelas físicas e emocionais. Mais tarde, tornou-se magistrada e dedicou a sua carreira a modificar as condições precárias dos presídios franceses e de outros países, que se assemelhavam mais a áreas de extermínio do que centros de ressocialização. O seu trabalho rendeu a nomeação ao cargo de Ministra da Saúde de França em 1974, no qual lutou pelo direito das mulheres e obteve lendárias conquistas, como a facilitação de métodos contraceptivos e a elaboração da lei que despenalizou a interrupção voluntária da gravidez. Em 1979, foi a primeira mulher a ser eleita presidente do Parlamento Europeu, exercendo a função até 1982.

Tendo uma personagem tão rica de nuances e com tantas conquistas, seria fácil elaborar um filme que apenas relatasse toda a sua história. Porém, o realizador mostra o trajeto de Simone como um coletivo de reflexões extremamente pertinentes sobre a atual conjuntura social e política do mundo. O argumento trata cada evento da vida de Veil como uma lição de empatia, memória, superação e todas juntas formam a sua protagonista e a sociedade em que ela está inserida. Por lutar pelos direitos das mulheres e pela sua independência, Simone teve o seu profissionalismo questionado. Na luta para que o holocausto não fosse esquecido e banalizado, a magistrada teve que reviver o seu trauma diversas vezes.

Olivier Dahan filma e constrói as cenas com muita elegância e domínio da narrativa. Existem planos-sequência que revelam o quanto a figura pública e profissional de Simone estava diretamente ligada à sua vida pessoal. Algumas cenas são tão belas que chegam a tirar o fôlego, como o regresso de Veil à Auschwitz e aos monumentos erguidos em memória das vítimas dos campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial. Dahan é experiente em contar histórias reais com classe e sensibilidade, como o seu brilhante trabalho em La Vie En Rose (2007) sobre a cantora francesa, Édith Piaf, então não é de admirar que saiba misturar complexidade e tristeza com superação e beleza.

Existem algumas escolhas criativas que merecem ser questionadas, como a narrativa não-linear do filme, que se destaca muitas vezes por ser confusa e desnecessária. Se o argumento seguisse a cronologia dos factos, acredito que os eventos teriam mais impacto na longa-metragem. A carga melodramática também está presente, ela é quase uma obrigação na maioria das biografias. Algumas passagens são exageradamente dramáticas e acabam por retirar, um pouco, o espectador do aspecto realístico que a história poderia ter, às vezes até resultando em atuações fracas. Porém, nada tão brusco que faça a obra perder a sua força.

O resultado final é um biopic extremamente competente, sensível e com reflexões importantes sobre a atual situação social e política do mundo. Simone Veil é um exemplo de uma pessoa que estava muito à frente do seu tempo e a sua história merece ser reconhecida pelas novas gerações. Simone: Le Voyage du Siècle é sobre não esquecer o passado para que possamos construir um futuro melhor para todos.

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Pixinguinha, Um Homem Carinhoso (2021) - Fio Condutor 14 de Julho, 2023 - 22:33

[…] crítica sobre Simone: le Voyage du Siécle (2021), teci alguns argumentos sobre a produção em massa de biopics e o porquê deste género […]

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