Shiva Baby (2021)

de Pedro Ginja

Por favor, nã….Incomodar. E é assim que o filme começa. A incomodar. A embaraçar. 

Ecrã a negro. Sons de sexo ouvem-se e estes terminam com o plano distante de um casal, no clímax sexual, que culmina com a frase “Ah yes, Daddy”, mas com a voz mais falsa que se pode imaginar. É um momento constrangedor. Finalmente, a câmara aproxima-se e vemos que é uma relação entre duas pessoas muito diferentes. A conversa não mostra intimidade, nem sequer amizade. Há troca de presentes e de dinheiro. Uma transação comercial, portanto. Danielle (Rachel Sennott) recebe uma chamada dos pais e tem de comparecer a um Shiva – uma espécie de after party após um funeral, habitual na tradição judia, onde se come e se fala dos outros, nem sempre nos melhores termos. Tudo é esmiuçado ao mais ínfimo pormenor. 

Despedidas feitas ao seu “cliente” e de regresso à vida real, Danielle combina o encontro com os pais e ao chegar questiona: “Mas afinal quem é que morreu?. Pergunta repetida muitas vezes ao longo do filme. A resposta nunca encaixa em Danielle, perdida na sua vida dupla. 

Danielle é uma jovem, em início de vida adulta. Aquela fase onde não sabemos bem o que queremos fazer, nem o que queremos ser. Coming of Age – expressão americana sobre o tempo de muitas dúvidas, medos e lutas pessoais. É um tempo complicado para manter a sanidade mental. Deixamos de ter a proteção dos pais, estamos no mundo real e as pessoas não nos protegem. Cada um protege-se a si e aos seus. Danielle ainda tem a proteção dos seus pais que, na sua ignorância, procuram ajudar e encaminhar a filha para caminhos de segurança e estabilidade. E o primeiro passo, após o clássico curso sem saída tirado por Danielle na faculdade, é arranjar um emprego estável.

Existe em Danielle um olhar derrotado e um sentimento de desgraça anunciada, mesmo antes de entrar no Shiva. E logo vê Max (Danny Deferrari), o seu “cliente” da manhã. Desde o início ao fim do filme somos confrontados com um constante desenrolar de situações embaraçosas. Danielle não sabe para onde se virar e a sua vida dupla parece estar prestes a desmoronar. Como se não bastasse, surge a sua ex-namorada, Maya (Molly Gordon). E não fica por aqui. Cada nova personagem introduzida traz um novo problema, culminando na cena mais constrangedora do filme, numa mini-van repleta de problemas não resolvidos.

O Shiva, percebemos, é uma espécie de passerelle para os pais mostrarem as conquistas dos filhos. E para falar bem, mas principalmente mal, das decisões que eles tomam. Embelezam ou pintam a vida dos filhos da melhor maneira possível. A necessidade, no mundo atual, de embelezar a nossa vida. Todos somos culpados. Temos de mostrar a nossa melhor vida. Vaidade ou vergonha são os catalisadores. Fazer parte do mundo real mesmo que, na nossa mente, estejamos no planeta mais distante, a anos-luz do nosso destino. Ultimamente tenho gravitado para filmes sobre a mentira e de como esta afeta o que nos rodeia. Este filme mostra que podemos fugir mas não nos podemos esconder. A verdade vai acabar por nos encontrar.

O desconforto acaba por trazer comédia. Sentimo-nos mal por Danielle, mas acabamos por rir do acumular de tensão. A comédia do desconforto. Mas enganem-se se esperam um filme leve. Senti leveza e certeza no olhar de Emma Seligman na sua primeira longa-metragem, mas também a sensibilidade para abordar temas sérios da saúde mental e da nossa sexualidade. Não existem tabus nem mentiras para esconder verdades reais que muitas “Danielle´s” da vida real sofrem. A pressão da sociedade para ser a nossa melhor versão em todos os momentos. Não há espaço para o erro ou a dúvida. Ou para pensar diferente. Os “Outros” forçam-nos à conformação, a ser mais do mesmo, a perder a individualidade para agradar a todos. Esforço inglório, como todos sabemos. Uma selfie de Danielle acaba por despoletar o clímax do filme. Surge o desespero em Danielle, não existe saída da mentira, de fugir das responsabilidades e do que realmente quer. 

“Mas afinal quem morreu?”. Uma pergunta que ficou também comigo durante todo o filme. Danielle morre e renasce qual Fénix nascendo das cinzas da sua vida dupla. Tudo resolvido? Nem por sombras, mas transforma o olhar derrotado num olhar de esperança. Bastou descobrir a sua verdade.

Um começo auspicioso para Emma Seligman e Rachel Sernott. E a certeza de querer ver mais dos seus trabalhos no futuro.

4/5
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