O filme faz parte da fase quatro do universo Marvel. Informação irrelevante para quem não o segue. A questão importante a fazer é se este filme resulta por si só. A resposta a esta pergunta não é um sim ou não categórico. É mais complicado que isso, assim como o filme. Passo a explicar.
Shang-Chi, mestre de kung-fu, é um dos muitos super heróis do universo Marvel, criado e pensado como filho de Fu Manchu. Devido a problemas de direitos de autor desta personagem, a sua história foi alterada. É agora associado a Zheng-Zu, mais conhecido, ao comum dos mortais, por Mandarim, eterno vilão e inimigo de Iron Man. Shang-Chi, surgiu no ano de 1973 como parte de uma história maior mas só teve um livro em seu nome 10 anos depois, com o crescimento exponencial da sua popularidade. Tudo isto ligado a Bruce Lee como embaixador do Kung-fu nos E.U.A. Após a sua morte foi lentamente caindo em declínio até desaparecer da cultura popular. Com a exceção de fãs inveterados de comic books, poucos têm conhecimento de Shang-Chi. E penso que é por aí que começam os problemas.
Conheci sobre a sua existência através do universo Marvel, que sigo continuamente ainda antes de ele ser denominado assim. A minha primeira reação foi de surpresa. Quem é? O que faz? De onde veio? Consegue voar? É rico? É um ás tecnológico? Transforma-se num monstro quando irritado? Torna-se invisível? Dispara bolas de fogo das mãos? Não a todas estas. Surpresa passa a confusão. Descubro que o poder dele vem de 10 anéis, um para cada dedo da mão. De confusão passa a desilusão. O entusiasmo não era muito, mas a confiança no universo Marvel e no que conseguiram construir até hoje, sim. Shang-Chi, ao menos, prometia ser algo diferente do normal. Diferente dos deuses do Olimpo, Thor e Loki, ou dos heróis estabelecidos, como Spider-Man e Iron-Man.
Voltando ao filme, temos a máquina Marvel a todo o vapor. Não se pode negar. É uma máquina bem oleada. Tudo funciona bem, sem soluços – sobre carris, como se costuma dizer -. Destino traçado e conhecido sem espaço para improvisação e originalidade. Simu Liu, como Shang-Chi é como um pão sem sal. Não há como negar a capacidade física nas cenas de luta e ação. Marca presença e de forma autoritária. Herdeiro de Bruce Lee, sem dúvida. Mas depois o impacto emocional é inexistente.
Sou fã de Awkwafina. Tanto em stand-up como em Crazy Rich Asians (2018). Descobri depois The Farewell (2019) – de uma sensibilidade tocante. E estou com ela até que pega num arco. Percebo a razão de a colocar na ação. Qual é o mal de ser apenas o comic relief quando bem feito? A personagem de Awkwafina pedia isso. Mas o Universo Marvel quer mais. Sempre a pensar mais além. Aliás, as cenas do confronto final, apesar das referências a Lovecraft, que aprecio, são confusas e com demasiado a acontecer. Tentáculo para aqui, tentáculo para ali. Mosquitos gigantes por todo o lado. Setas a encher o ecrã. E muito mais.
*OVERLOAD CEREBRAL*. Conselho de amigo à Marvel, por vezes menos é mais.
Reconheço que o primeiro ponto a favor deste filme foi ver Tony Leung no elenco. Um dos meus atores favoritos, de tantos filmes marcantes de Wong Kar Wai. Uma lenda e um atestado que algo existia aqui. E não desilude. É uma das melhores partes do filme. Percebo porque aceitou o papel. A razão principal seria o dinheiro, mas não acho que o seja. É mais uma personagem trágica. A ânsia de poder domina a sua vida até que conhece o amor e torna-se a sua melhor versão. Abandona o passado de crime mas o destino tem outros planos. Crime e castigo. Sempre de mãos dadas. Se calhar estou a ver mais do que o filme merece. Vejo uma tragédia digna de Shakespeare mas que se desvanece para dar lugar à “máquina” Marvel. Existe uma personagem secreta que vai trazer sorrisos nostálgicos a fãs do universo (dica: Homem de Ferro 3).
Como fã da cultura oriental, foi bom ver a criação do mundo místico de Ta Lo. Populado por muitas criaturas mitológicas da cultura oriental como dragões, raposas de nove caudas (Huli Jing), leões (Shishi), fénix (Fenghuang) e até o scene stealerMorris (Dijiang) o é também. Mas não só. Os cenários, fatos e os pequenos detalhes. A mudança dos poderes dos 10 anéis para pulseiras à primeira vista pareceria ser uma péssima ideia. Mas não, porque a Marvel sabe ser cool sem esforço. Após quase 2 semanas ainda é um detalhe do qual me lembro melhor.
Não saí desiludido mas também longe de sair maravilhado. O meu conselho é entrar sem grandes expectativas. Desliguem o cérebro analítico e acordem a vossa inner child. Existe uma frase de Ricky Gervais que assenta como uma luva para concluir: “We are all going to die soon and there is no sequel”. Ao contrário do que dizem os puristas, nem sempre tudo tem de ser e respirar cinema. Por vezes só precisamos de um parque de diversões.