“If you no longer go for the gap that exists, you’re no longer a racing driver!”
Como toda a gente, em algum momento, sou confrontado com certos paradoxos que, perante aquilo que defendo e pratico, me tornam num verdadeiro hipócrita. E o desporto é um deles. Sempre neguei qualquer tipo de fé e superstição, mas, meus amigos, no que toca a coisas que não têm, na sua substância, interesse nenhum, podem acreditar que, com toda a certeza, vou levar a superstição ao mais alto nível e, se for caso disso, criar rituais que não lembram ao menino Jesus. Isto tudo para dizer que existem, sim, pessoas que nasceram com um único propósito… O de Senna era o automobilismo.
O realizador britânico Asif Kapadia mostra nesta longa-metragem a arte do documentário. O poder de reviver, traduzir e, acima de tudo, clarificar ao máximo possível aquilo que foi uma personalidade e a importância que teve, não só para os nossos irmãos do outro lado do Atlântico, mas para todos aqueles que religiosamente se entusiasmam ao ver um monte de milionários a conduzir carros a alta velocidade durante algumas horas.
O piloto brasileiro Ayrton Senna da Silva foi maior que o desporto. Aliás, tal como quem vos escreve, provavelmente muitos outros não acompanhavam a Fórmula 1 e sabiam o nome deste astro. Este documentário não só prima em desvendar os meandros políticos que rodeavam este desporto na altura, como também mergulha bem na personalidade de Senna. Aqui temos a sensação de conhecer as suas crenças e, acima de tudo, a sua mundividência tanto em relação ao automobilismo como também, mesmo que por breves momentos, da sua vida particular.
A forma como o filme explora a rivalidade entre Senna e Alain Prost também é inteligente numa perspetiva narrativa, apesar de, se formos honestos, falar de Senna sem falar de Prost seria uma blasfémia. Não obstante, é interessante assistir à colisão entre duas personalidades que se chocavam constantemente, tanto dentro como fora da pista. De um lado, um Senna que tinha um instinto mais matador e, do outro, um piloto brilhante, mas que andava sempre com o regulamento debaixo do braço. E nisto, um enorme parabéns para Manish Pandey, responsável pelo argumento, que teve a sensibilidade para não simplificar e dicotomizar Senna como apenas um jovem inconsequente, e Prost como o piloto que só ganhava na secretaria. É uma jogada inteligente, não só em respeito a duas lendas, mas também em termos narrativos, pois para o nosso herói ser grande, o “antagonista” também tem de o ser.
Senna é um documentário excecional que nos dá a conhecer uma personalidade que teve um impacto enorme não só numa, mas em várias gerações. Explora bem o mundo da Fórmula 1 e traduz bastante bem a emoção, justificando a paixão que milhões compartilham ao redor do mundo por este desporto, conseguindo construir uma narrativa que, mesmo sabendo da tragédia, uma pessoa não resiste a querer acreditar que não foi verdade. Que o digam os ninjas cortadores de cebola.