Sem Coração (2023)

de Sofia Alexandra Gomes

“É normal ter medo de uma coisa que você quer muito fazer?”

Sem Coração, dos realizadores Nara Normande e Tião, desenrola-se em Alagoas, no Brasil, no verão de 1996. É aqui que a jovem Tamara (Maya de Vicq) aproveita as suas últimas semanas na vila piscatória alagoense onde mora, antes de partir para estudar em Brasília. Um dia, a adolescente de 14 anos cruza-se com uma garota chamada de Sem Coração (Eduarda Samara) pelos seus amigos, que a atormentam com esta alcunha devido à cicatriz que tem no peito… E desde o primeiro encontro com a ‘menina misteriosa’ Tamara fica fascinada.

O filme une as curtas Guaxuma (2018), de Nara, e Sem Coração (2014), de Nara e Tião. Trata-se de uma película que não é propriamente um romance, embora a sinopse o faça parecer (e esteja classificado como tal). Sem Coração assume-se mais como um drama, que é violento e agressivo, mas também delicado e subtil; que é enternecedor e reflexivo, mas também brutal.

A narrativa explora, além da aproximação de Tamara e Sem Coração, questões acutilantes da vivência adolescente, flagrantes principalmente para aquela que é a vivência da juventude no Brasil. Numa estória notoriamente inserida no género coming-of-age, Galego (Alaylson Emanuel), Binho (Kaique Brito), Vitinho (Ian Boechat), Eules (Eules Assis), Tamara e Sem Coração atravessam esse processo de metamorfose, abandonando a redoma de uma ingenuidade que ainda persistia.

O confronto com a realidade traz à consciência do grupo de jovens o reconhecimento do perigo e do preconceito mundanos ao mesmo tempo que eles descobrem as suas identidades e a sua sexualidade, especialmente. Aliás, essa descoberta é tudo menos cliché: é nua e crua e despretensiosa, sendo por isso absolutamente merecedora do prémio do público no Queer Lisboa 2024.

A par do enredo poderosíssimo a fotografia é igualmente deslumbrante, deixando qualquer espectador embevecido. A maioria das cenas, já de uma estrondosa energia e intensidade, são catapultadas graças à fotografia, que mostra os mergulhos na praia, a pesca noturna da tainha iluminada por lanternas, o baile à luz do luar (entre outros momentos) de uma forma que torna impossível o desvio do nosso olhar do ecrã. É graças a tudo isto que Sem Coração é premiado na 30ª edição do CineEco com o Prémio Camacho Costa, atribuído àquela que é considerada a melhor Longa-Metragem na categoria de Competição de Longas-Metragens em Língua Portuguesa.

A vivência em bando, nomeadamente, dos adolescentes brasileiros em Sem Coração remete-nos de certa forma para o livro Capitães da Areia de Jorge Amado. A hostilidade sentida por alguns dos elementos do grupo de Alagoas devido à classe social à qual pertencem e o tema do sexo e do amor na adolescência ressoam com a obra referida, ainda que a violência seja mais pujante na mesma. De facto, o autor desta narrativa é brasileiro e a história dos jovens do seu Capitães da Areia acontece em Salvador, capital da Bahia.

Nesta longa-metragem há apenas uma nota a fazer: os diálogos, ainda que precisos, necessitavam de uma expressão mais solidificada, isto é, os assuntos retratados são de uma tamanha sensibilidade que acredito precisarem de um maior aprofundamento. Porém, um desenvolvimento mais alargado não correria o risco de retirar ou diminuir a magia da trama? A sua graciosidade tão particular? Levanto a questão, que não é retórica.

Sem Coração é sobre a angústia do amadurecimento, que é constrangedor, furioso e lindo, tudo em simultâneo, e Tião e Nora Normande mostram essa panóplia paradoxal de sensações e sentimentos que caracterizam a adolescência sem cair em lugares-comuns, tarefa que é bastante difícil.  

A Tamara e a nós resta-nos confiar na ‘’rainha dos raios, [do] tempo bom, tempo ruim’’, ‘’senhora de tudo dentro de mim/[nós]’’.

4.5/5
0 comentário
2

Related News

Deixa Um Comentário