“X Marks the Spot.”– Saw (2004)
À décima é de vez. Após diversas tentativas anestesiadas em faturar com o nome desta franchise e empurrar o seu falecido corpo em reboots decompostos numa morgue de propriedades intelectuais, os produtores e criadores conseguem finalmente capturar o elemento principal que bombeia o sangue pelos fragmentos destes puzzles carnívoros. A alma desta saga cadáver permanece intacta em Jigsaw, o homem que originou esta filosofia sangrenta é o espetáculo imprescindível deste circo macabro denominado de Saw. Cicatrizada pela sua dedicação absurda aos infindáveis litros de sangue e metros de tripas derramadas, e à incoerente, todavia fascinante, lógica narrativa – as sequelas revelam flashbacks suficientes para preencher um calendário –, esta impensável franquia de horror atinge o seu décimo capítulo com um regresso que circunscreve a sua qualidade na pele da audiência através de um ferrete, suplicando pelos habituais rugidos de repugnância e uma surpreendente dose de lágrimas genuínas.
Uma espécie de reboot/sequela/prequela, que retorna ao passado, entre os eventos de Saw (2004) e Saw II (2005), para um John Kramer (Tobin Bell) – ainda vivo – a defrontar o seu cancro e a sua inevitável morte. A esperança comes in a little glass vial. A little glass vial? A little glass vial. Perdoem-me a referência. A esperança surge num procedimento médico experimental, situado no México, incentivado pela doutora Cecilia Pederson (Synnøve Macody Lund) e essa esperança é assassinada pela revelação da sua fraude. Como uma das personagens menciona: “Out of all the men to cheat, you pick John Kramer?”. Acompanhado pela sua aprendiz, Amanda Young (Shawnee Smith), Jigsaw inicia um novo jogo com estes indivíduos que lucram com o desespero e a procura por sobreviver. Uma ironia absolutamente deliciosa que esta longa-metragem mergulha conscientemente, com estes ilusionistas da morte a enfrentar os seus próprios esquemas.
Durante décadas fora intitulada como a fundadora do género torture porn, uma ofensa errada que procurava diminuir e desvalorizar esta saga, criada acidentalmente por James Wan e Leigh Whannell, que é salientada pela paixão da sua audiência e pelo seu interesse em desvendar as peças perdidas deste puzzle narrativo, entusiasmada com sequelas que ofereciam a promessa de respostas. Sim, a criatividade sanguínea e o seu aspecto macabro é atrativo para inúmeros espectadores, contudo a sua distinção principal para os apaixonados reside na importância narrativa que os criadores atribuíam aos capítulos, caminhando trajetos insanos somente para conseguirem inserir lógica aos seus mistérios e decisões estranhas.
Essa euforia desvanecendo com sequelas decepcionantes e, eventualmente, apagada por um último capítulo imprestável que confirmava as acusações negativas dos críticos (em 3D!) e por dois reboots – Jigsaw (2017) e Spiral: From the Book of Saw (2021) – que simplesmente não compreendiam o apelo desta franchise. Distante de Texas Chainsaw Massacre, Halloween ou até Nightmare on Elm Street, os produtores estão algemados ao despertar do século 21, sendo praticamente impossível avançar no tempo e prosseguir em novos enredos ou conceber outros sucessores aborrecidos desprovidos da icónica voz e presença intimidante e carismática de Tobin Bell (comprovado nos reboots). O seu sucesso provém das ligações construídas entre as personagens, durante múltiplas sequelas; do seu ambiente de novela de terror (TV Globo Saw Massacre); e do equilíbrio entre sangue e emoção.
Saw X destaca-se justamente pelo regresso ao seu engenho criativo, sede sangrenta por drama e horror e por reencontrar o seu coração (literal e metafórico), colocando o seu primeiro plano em John Kramer, permitindo que Tobin Bell seja, novamente, o protagonista desta franquia, e o seu foco na intensidade emocional do elenco, principalmente na conexão entre John Kramer e Amanda (ambos os atores excelentes) que formam uma equipa bizarra extraordinária. Aliás, por vezes, a vontade está em simplesmente presenciar as suas conversas, esquemas e fragilidades sentimentais, isentas dos jogos mortais. As aprendizagens atrás das filmagens são refletidas, também, no ambiente desta longa-metragem que rejeita o humor forçado self-referential dos reboots, proporcionando momentos negros divertidos que proveem naturalmente da sua seriedade e da relação entre espectadores com a própria saga.
Curiosamente, este retorno às origens – ou as sequelas das origens – aproxima-se da evolução que esta série cinemática desesperadamente procurou nos capítulos anteriores, adotando, presentemente, os avanços técnicos essenciais para sustentar um possível futuro criativo contínuo, sem remover o seu apelo primordial. A direção de fotografia preserva a sua sujidade e os exagerados filtros habituais enquanto atualiza a definição de imagem; a edição frenética abranda ligeiramente, com pausas silenciosas entre os protagonistas e sequências que crescem naturalmente, cortadas apenas ocasionalmente com o movimento enérgico comum destas histórias; o argumento recusa-se a depender somente nas armadilhas, elaborando um núcleo dramático que sobrevive além do sangue derramado. Curioso, pois os argumentistas são responsáveis por Jigsaw e Spiral: From the Book of Saw, e o cineasta, Kevin Greutert, entregou uma das superiores sequelas – Saw VI (2009) – juntamente com o desastre, Saw: The Final Chapter (2010). Compreende-se a confusão dos produtores quando confrontados com uma reação maioritariamente positiva durante os test screenings desta longa-metragem, pois esta franchise atropela-se constantemente durante as produções para encontrar um propósito; para descobrir a sua alma perdida. X marks the Spot.
O seu primeiro ato surpreendentemente extenso revela a sua dedicação neste trilho cinemático, atravessando a previsibilidade da sua história com confiança dramática. Abatido pela sua doença terminal, Kramer é rejuvenescido pela esperança de uma solução e destronado com a sua revelação. Espectadores familiares conhecem a sua conclusão mortal e até um público desconhecido rapidamente deduz o seu caminho. É uma introdução longa, todavia fundamental, utilizando a previsibilidade a seu favor, pois subitamente quando Kramer descobre uma segunda oportunidade, o sorriso de Tobin Bell torna-se devastador. Os seus olhos iluminados por uma cura inexistente destroça completamente a audiência, precisamente por sabermos o seu fim trágico. É um aspecto que adiciona uma camada emocional à longa-metragem, incluindo ao seu twist que é, felizmente, movido por temática narrativa, compensando a sua previsibilidade.
Simultaneamente, esta abertura prolongada propulsiona uma indignação e animosidade fundamental perante as futuras vítimas de Jigsaw, produzindo um debate interno no público acerca da moralidade dos seus atos vingativos, conscientes de serem errados, no entanto, acompanhados por um sentido de justiça doentia contraditória. Os seus comportamentos exageradamente cartoonescos auxiliam este elemento, encaixando perfeitamente numa saga onde o absurdo sempre funcionou como um ponto de atração. Esta equipa fraudulenta de rostos mascarados investem demasiado na ilusão, com materiais médicos apropriados e um esquema inteiro com diversos empregados espalhados pelo mundo. Como? Onde? Quem transporta tudo isto? Questões frustrantes para um espectador exigente; meramente divertidas para os aficionados. Não importa. Tobin Bell e Shawnee Smith interpretam personagens duas décadas mais jovens; a peruca de Amanda parece uma armadilha de Jigsaw. É insignificante numa novela de terror com a lógica de um cartoon que funciona como um invertido Ocean’s 11 psicopata, exceto que o heist implica serrar uma perna.
Repleto de armadilhas inventivas, excelentes efeitos práticos de gore, esquemas internos fascinantes e uma história verdadeiramente comovente, Saw X sobressai como uma das melhores obras da franchise. Improvável de atrair audiências desinteressadas nesta série cinemática, contudo, resgata a esperança numa conclusão adequada para uma saga inconsistente e captura o seu valor central, há muito tempo perdido, compreendendo que John Kramer e as suas relações pessoais e humanas permanecem identicamente relevantes quanto os jogos de Jigsaw, pois não existe sangue sem um corpo.