Sangue do Meu Sangue (2011)

de Rita Sousa

Até onde somos capazes de ir por amor?

Sangue do Meu Sangue é sobre amor incondicional. O amor de uma mãe por uma filha, e o amor de uma tia por um sobrinho. Duas mulheres capazes de sacrificar tudo pelos que amam. É assim que João Canijo nos apresenta aquele que é considerado um dos melhores filmes da sua carreira, resultado de um trabalho de criação de personagens e linguagens que vai para além do expectável.

Este é um filme de atores; é um trabalho de criação conjunta que eclode num exercício de representação exímio, onde cada um tem o seu momento para brilhar. Aqui, tudo é conjugado de forma a criar elos de ligação não óbvios, que levam o espectador a questionar-se sobre o que faria naquela situação.

Ao longo de duas horas e vinte minutos, é mostrada a vida da família Fialho. Márcia (Rita Blanco) é mãe solteira, trabalha como cozinheira numa pequena taberna, e reside com a sua irmã Ivete (Anabela Moreira) e os seus dois filhos Joca (Rafael Morais) e Cláudia (Cleia Almeida) no bairro Padre Cruz, em Carnide. Vive uma vida de sacrifícios, tentando dar aos seus filhos o melhor, mas nem sempre isso é possível. Um dia, duas tragédias acabam por abalar o seio desta família: Joca tenta enganar o dealer para quem trafica, acabando por ser apanhado, o que leva Ivete a tentar de tudo para resolver o problema do sobrinho, e Cláudia apaixona-se por um professor universitário, bastante mais velho, fazendo com que Márcia relembre os fantasmas do seu passado, e tente de tudo para acabar com aquela relação.

O uso de um núcleo familiar como base da história já é algo característico no cinema de João Canijo. Reflete uma tentativa do realizador em explorar a identidade nacional, pondo em evidência espaços geográficos e explorando as suas dinâmicas. Neste filme, o subúrbio funciona como um espaço fechado, por isso, no início existe uma sequência de planos que seguem Joca a entrar dentro do bairro. Há a necessidade de levar o espectador até àquele lugar, na tentativa de o contextualizar dentro da conjuntura do filme.

Aliada a esta ideia de grupo, há também a tentativa de encaixar esta família no centro da organização discursiva. Isto acontece porque por um lado, a criação conjunta do argumento com os atores permite um maior envolvimento das personagem na história, e, por outro lado, funciona como uma tentativa de reforçar o papel da mulher na dinâmica familiar, algo patente na filmografia do realizador. Como complemento para esta obra, existe ainda um documentário denominado de Trabalho de Actriz, Trabalho de Actor (2011) que funciona como uma espécie de Making Of da criação do filme, onde é percetível toda a pré-produção, e a forma como os atores participaram ativamente na criação desta longa-metragem.

A linguagem neste filme é muito presente. Não há espaços mortos, e o diálogo acontece quase de forma interrupta, moldando a situação. A existência de fala simultânea traz ao filme a realidade de um ambiente familiar. Também o ruído adquire o estatuto de linguagem, e reflete quase uma ideia de coro, proveniente da tragédia grega, que é muito recorrente no estilo de Canijo. A televisão, sempre ligada, funciona como barulho de fundo, e enquadramento da situação. O som é um dos aspetos fulcrais em Sangue do Meu Sangue. Há um contexto do espaço seja pela música que ecoa por todos os cantos, ou por um som proveniente da casa dos vizinhos que acaba também por ser uma reflexão do lugar, e das condições sociais em que esta família vive.

Outro ponto de destaque é o tempo, que deve ser falado de forma dupla. Primeiro, o tempo cronológico da narrativa. Todos as ações que provocam a história acontecem no passado e são resolvidas no presente do filme. Em segundo lugar, a duração das cenas. Este filme estica-se e deixa a ação acontecer, dando espaço aos atores para viverem o momento. O ritmo é lento, com poucos planos e poucos movimentos de câmara; algo que é avisado logo de início, como na primeira cena em que todos se encontram no mesmo espaço, quando Márcia chega a casa para o jantar, e nota-se claramente ao longo de todo o filme.

No que diz respeito aos aspetos técnicos, há subjacente uma ideia de dupla cena que acontece em diversos momentos do filme. Graças a isso, é possível o espectador testemunhar diversas ações em simultâneo, e no mesmo plano. Toda a construção cinematográfica do filme pretende um realismo unitário entre a imagem e o som. Esta técnica já vem sendo trabalhada em filmes anteriores, como por exemplo em Noite Escura (2004) em que a câmara é movível, sendo uma testemunha da ação, enquanto que aqui está circunscrita ao lugar, sendo ela a organizadora das cenas. O espaço cénico é fulcral para esta questão, tendo em conta que a arquitetura do espaço (paredes, janelas, portas) é o próprio enquadramento das cenas. 

Em relação ao elenco, este já é comum aos filmes de João Canijo. Rita Blanco, Anabela Moreira, Beatriz Batarda, Cleia Almeida, Fernando Luís e Nuno Lopes são nomes já expectáveis, mas não é por isso que não deixam de surpreender, e o trabalho dos atores é realmente fantástico. Há que destacar Rita Blanco, que com a sua Márcia cria uma personagem muito completa que consegue ao longo do filme passar por diversos registos.

Sangue do Meu Sangue é um filme pesado, cru, realista e com muita história complexa, mas que capta o olhar do espectador do início ao fim. É uma obra-prima da cinematografia nacional, que merece ser vista por todos.

5/5
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